Mas o blogue organizava-se de uma maneira muito curiosa. Primeiramente a coerência e o método: durante cerca de três anos, cento e cinquenta semanas, para ser mais exacto, o autor colocava um novo post, um texto relativamente longo onde falava de um filme, de um tema, de um aspecto da vida, de uma curiosidade, de um colaborador de Alfred Hitchcock, mas sempre numa perspectiva muito pessoal.
Depois, estes não eram textos de um crítico encartado sobre um cineasta, eram e são divagações de um cinéfilo que escreve, na primeira pessoa do singular, sobre cinema e um cineasta que admira e ama. São diálogos, quase em tu cá tu lá, entre quem vê um filme e aquele que o concebeu. São dois eus em confronto, de forma descomplexada e simples, mas nem por isso menos profunda, intelectualmente ágil e estimulante.
Quem é este José Varregoso que assim aparece primeiro num blogue, agora em livro reunindo as crónicas, os cento e cinquenta posts ali previamente publicados? Pouco sei do autor, falei com ele uma vez, para ele me entregar o livro que li com proveito e curiosidade, mas acho que o que ele diz de si próprio no prefácio do volume que temos agora nas mãos é o bastante, pelo menos o essencial:
Escreve ele na apresentação do blogue e no primeiro texto desta obra: “Isso da identidade pessoal de cada um de nós tem muito que se lhe diga. Deixem-me contar-vos desde já que estudei Antropologia e que, portanto, me sinto rudimentarmente habilitado para falar daquilo que pode moldar a personalidade de um ser humano. Bem sei que é inevitável que se fale da soma de muitos factores biológicos, sociais e culturais. Mas é também certo que o percurso biográfico de alguém é sempre marcado pelo nível dos seus interesses e paixões particulares. Pelas suas inclinações emocionais ou psicológicas. Cada pessoa representa uma soma imensa de factores. Vejam-me como um hitchcockiano.”
E precisa o contexto do seu trabalho: “Conto publicar aqui, com regularidade, crónicas sobre o Cinema, a Vida e o Suspense. Três valores esses que serão temáticas permanentes nas minhas reflexões.”
José Varregoso tem depois algumas qualidades apreciáveis. Escrever sobre cinema (como sobre qualquer forma de expressão artística) pode ser tarefa a cumprir de muitas formas e algumas delas bastante entediantes para quem lê. Escrever simples e claro, sem que isso torne linear e desprovido de qualquer profundidade de análise o que se escreve, não é tarefa fácil. Por isso muitos escrevem “difícil” e “arrevesado” para se darem ares e assim julgarem colmatar a falta de profundidade e de originalidade.
José Varregoso sabe-o bem e tem consciência disso quando afirma: “Procurarei aqui nunca parecer entediante nem presunçoso; escrever sobre o que me agrada e motiva a compor um texto; e não esquecer que escrevo para ser lido. Porque escrever é um meio de comunicação e não tão só um meio de encontro do escritor consigo mesmo e com os seus ideais.”
E precisa o objecto da sua análise: “Claro está que um dos pontos de referência das minhas crónicas será a figura de Alfred Hitchcock. O que ela significa para o Cinema e como reflecte perspectivas de vida e conceitos culturais variados. Já saberão portanto que Hitchcock será uma figura emblemática da minha escrita neste blog. Mas não pretendo construir um site sobre o cineasta e sobre a sua filmografia. Procurarei antes contar a quem me ler como algum do cinema de Hitchcock me tem influenciado. Quero escrever sem moldes estritamente definidos. Escrever sem orientações rígidas. Cada crónica terá a sua vida própria e cumprirá o seu objectivo, mas gostava de pensar que o conjunto de todos os textos aqui apresentados reflectirá uma lógica e uma coerência uniformes.”
José Varregoso apresenta-se também de forma discreta: “Sou um cinéfilo mas não me devem ler como um crítico de cinema esclarecido, nem tão pouco como um filósofo ou um cientista social.”
O que me interessou particularmente neste trabalho, além da paixão que testemunha, é a reflexão sobre temas tão caracteristicamente hitchcockeanos como a construção do suspense, a utilização do medo, a definição de personagens femininas, o amor e o sexo na obra deste cineasta, o falso culpado, o mistério da morte, entre muitos outros. Depois, José Varregoso é também um coleccionador de curiosidades, um cocabichinhos que nos dá a lista das aparições de Hitchcock em todos os seus filmes, todos os seus trabalhos para a televisão, um nota sobre o trabalho fotográfico que a “Vanity Fair” fez para homenagear o cineasta, e tantas outras preciosidades. Muitas de difícil conhecimento e acesso para o leitor comum.
Mas como de um blogue se tratava “Eu, Hitchcockiano, Me Confesso” acompanhava também o dia a dia do autor, que tanto pode falar de amigos e amizade (citando os bons e maus amigos dos filmes de Hitch), como saudava as celebrações de um novo ano com champanhe made in Hitchcock.
“Perdoem-me se estas linhas carecerem de humor e de irreverência.”, diz José Varregoso. “Acho que sou um homem sério e frequentemente sisudo e circunspecto. Mas não me levem demasiadamente a sério. Nem tão pouco me identifiquem com um intelectual esclarecido apostado em ensinar aos outros como devem entender a Vida e o Cinema. Vejam-me antes como um hitchcockiano... Nada mais...”
Lendo “Eu, Hitchcockiano, Me Confesso” cedo se perceberá que Varregoso não só tem humor, como também o utiliza de forma criteriosa. Esta última citação testemunha-o. E se não está saudavelmente “apostado em ensinar aos outros como devem entender a Vida e o Cinema” (basta os que já existem e são tantos!), não deixa de ser verdade que é um esclarecido e apaixonado hitchcockiano. Que para quem gosta de cinema, de suspense, e da vida… é quanto basta.
Lauro António, Cinemas King, bar, 21 de Novembro de 2009