quarta-feira, janeiro 18, 2012

CASA ARRUMADA


Um amigo português que vive em valência enviou-me um poema. Recordado certamente a minha casa, onde muitas vezes vem, e poucas encontra lugar para se arrumar comodamente. O que sempre se arranja por entre livros e jornais. Gosto do poeta. Gostei do poema. Obrigado Zé.

Casa arrumada

Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa
entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um
cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os
móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras
e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições
fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca
ou namora a qualquer hora do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

segunda-feira, janeiro 16, 2012

GLOBOS DE OURO, 2012

 :

             GLOBOS DE OURO 2012 
Terminou mais uma cerimónia da atribuição dos Globos de Ouro. Promovidos pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood, foram entregues 25 estatuetas relativas aos melhores do cinema e da televisão, e efectuada uma justa homenagem ao magnífico actor Morgan Freeman. Os apresentadores foram Ricky Gervais e um copo de cerveja. Na assistência uma miríade de lendas e mitos da mais recente história do cinema e da televisão. E os prémios foram assim distribuídos (identificados pelo asterisco e a cor, de entre os nomeados):

CINEMA

MELHOR FILME (DRAMA)
* Os Descendentes
As Serviçais
A Invenção de Hugo
Nos Idos de Março
Moneyball – Jogada de Risco
Cavalo de Guerra

MELHOR FILME (MUSICAL OU COMÉDIA)
* 50/50
O Artista
A Melhor Despedida de Solteira
Meia-Noite em Paris
A Minha Semana com Marilyn

MELHOR REALIZADOR
Woody Allen por Meia-Noite em Paris
George Clooney por Nos Idos de Março
Michel Hazanavicius por O Artista
Alex Payne por Os Descendentes
* Martin Scorsese por A Invenção de Hugo

MELHOR ACTRIZ (MUSICAL OU COMÉDIA)
Jodie Foster em O Deus da Carnificina
Charlize Theron em Jovem Adulta
Kristen Wiig em A Melhor Despedida de Solteira
* Michelle Williams em A Minha Semana com Marilyn
Kate Winslet em O Deus da Carnificina

MELHOR ACTOR (MUSICAL OU COMÉDIA)
* Jean DuJardin em O Artista
Brendan Gleeson em The Guard
Joseph Jordon-Levitt em 50/50
Ryan Gosling em Amor, Estúpido e Louco
Owen Wilson em Meia-Noite em Paris

MELHOR ACTRIZ (DRAMA)
Glenn Close em Albert Nobbs
Viola Davis em As Serviçais
Rooney Mara em Millennium 1 – Os Homens Que Odeiam as Mulheres
* Meryl Streep em The Iron Lady
Tilda Swinton em Temos de Falar Sobre o Kevin

MELHOR ACTOR (DRAMA)
* George Clooney em Os Descendentes
Leonardo DiCaprio em J. Edgar
Michael Fassbender em Shame
Ryan Gosling em Nos Idos de Março
Brad Pitt em Moneyball – Jogada de Risco

MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA
Bérénice Bejo em O Artista
Jessica Chastain em As Serviçais
Janet McTeer em Albert Nobbs
* Octavia Spencer em As Serviçais
Shailene Woodley em Os Descendentes

MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO
Kenneth Branagh em A Minha Semana com Marilyn
Albert Brooks em Drive – Duplo Risco
Jonah Hill em Moneyball – Jogada de Risco
Viggo Mortensen em Um Método Perigoso
* Christopher Plummer em Assim é o Amor

MELHOR ARGUMENTO
* Woody Allen por Meia-Noite em Paris
George Clooney, Grant Heslov e Beau Willimon por Nos Idos de Março
Michel Hazanavicius por O Artista
Alexander Payne, Nat Faxon e Jim Rash por Os Descendentes
Aaron Sorkin, Steven Zaillian e Stan Chervin por Moneyball – Jogada de Risco

MELHOR FILME ESTRANGEIRO
The Flowers of War – China
In the Land of Blood and Honey – EUA
O Miúdo da Bicicleta – Bélgica
* Uma Separação – Irão
A Pele Onde Eu Vivo – Espanha

MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO
* As Aventuras de Tintin – O Segredo do Licorne
Arthur Christmas
Carros 2
O Gato das Botas
Rango

MELHOR BANDA SONORA ORIGINAL
* Ludovic Bource por O Artista
Abel Korzeniowski por W.E.
Trent Reznor e Atticus Ross por Millennium 1 – Os Homens Que Odeiam as Mulheres
Howard Shore por A Invenção de Hugo
John Williams por Cavalo de Guerra

MELHOR CANÇÃO ORIGINAL
Lay Your Head Down, Albert Nobbs
Hello Hello, Gnomeu e Julieta
The Living Proof, As Serviçais
The Keeper, Machine Gun Preacher
* Masterpiece, W.E.

TELEVISÃO

MELHOR SÉRIE (DRAMA)
American Horror Story
Boardwalk Empire
Boss
Game of Thrones
* Homeland

MELHOR ACTOR (DRAMA)
Steve Buscemi, Boardwalk Empire
Bryan Cranston, Breaking Bad
* Kelsey Grammer, Boss
Jeremy Irons, The Borgias
Damian Lewis, Homeland

MELHOR ACTRIZ (DRAMA)
* Claire Danes, Homeland
Mireille Enos, The Killing
Julianna Margulies, The Good Wife
Madeline Stowe, Revenge
Callie Thorne, Necessary Roughness

MELHOR SÉRIE (MUSICAL OU COMÉDIA)
Enlightened
Episodes
Glee
* Modern Family
New Girl

MELHOR ACTOR (MUSICAL OU COMÉDIA)
Alec Baldwin, 30 Rock
David Duchovny, Californication
Johnny Galecki, The Big Bang Theory
Thomas Jane, Hung
* Matt LeBlanc, Episodes

MELHOR ACTRIZ (MUSICAL OU COMÉDIA)
* Laura Dern, Enlightened
Zooey Deschanel, New Girl
Tina Fey, 30 Rock
Laura Linney, The Big C
Amy Poehler, Parks and Recreation

MELHOR TELEFILME OU MINI-SÉRIE
Cinema Verite
* Downton Abbey
The Hour
Mildred Pierce
Too Big to Fail

MELHOR ACTOR EM TELEFILME OU MINI-SÉRIE
Hugh Bonnevile, Downton Abbey
* Idris Elba, Luther
William Hurt, Too Big to Fail
Bill Nighy, Page Eight
Dominic West, The Hour

MELHOR ACTRIZ EM TELEFILME OU MINI-SÉRIE
Romola Garai, The Hour
Diane Lane, Cinema Verite
Elizabeth McGovern, Downtown Abbey
Emily Watson, Appropriate Adult
* Kate Winslet, Mildred Pierce

MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO EM SÉRIE, MINI-SÉRIE OU TELEFILME
* Peter Dinklage, Game of Thrones
Paul Giamatti, Too Big to Fail
Guy Pearce, Mildred Pierce
Tim Robbins, Cinema Verite
Eric Stonestreet, Modern Family

MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA EM SÉRIE, MINI-SÉRIE OU TELEFILME
* Jessica Lange, American Horror Story
Kelly MacDonald, Boardwalk Empire
Maggie Smith, Downton Abbey
Sofia Vergara, Modern Family
Evan Rachel Wood, Mildred Pierce

domingo, janeiro 15, 2012

CINEMA: MONEYBALL - JOGADA DE RISCO

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MONEYBALL - JOGADA DE RISCO

 “Moneyball – Jogada de Risco” é um filme muito interessante sob diversos pontos de vista. Enquanto o estava a ver lembrei-me várias vezes de dois filmes recentes, “A Rede Social” e “Drive”, ainda que por razões diferentes. Consultando depois a ficha técnica percebi que a aproximação com “A Rede Social” não era fortuita. Existe um mesmo argumentista (Aaron Sorkin), e um mesmo produtor (Michael De Luca). Depois, há um conjunto de coincidências que resultam obviamente dessa proximidade: ambos os títulos abordam casos de sucesso, protagonizados por jovens que se dedicam às novas tecnologias, informática sobretudo, e que triunfam na base de sucesso a todo o preço, sem olharem a quaisquer problemas de ordem afectiva ou social. As emoções guardam-nas, quando têm tempo para isso, para a família, neste caso a filha, e pouco mais. Ambos os filmes são muito equívocos quanto a intenções. Será que fazem o elogio dos seus protagonistas? Sim e não. Certamente que, num caso como noutro, o jovem em questão (ou os dois jovens em questão, um mais apagado por força da presença obsessiva do outro) tem capacidades que merecem ser sublinhadas, mas em ambos os exemplos há muito de, pelo menos, discutível na sua conduta.
Quanto a “Drive”, as semelhanças são diversas: ambos os filmes parecem ter sido rodados em “pianinho”, quase ao ralenti, com uma ou outra explosão, tanto ao nível da acção como da banda sonora.
Este novo filme sobre esse desporto americano tão apreciado nos US e que nós, europeus, não sabemos como se joga, é baseado no livro “Moneyball: The Art of Winning an Unfair Game”, de Michael Lewis, que conta a história verídica de Billy Beane (Brad Pitt), que foi director desportivo da equipa de basebol do Oakland Athletics. Billy Beane fora antigo jogador prestigiado, e agarrou na equipa num período terrível, quando três dos ídolos da temporada anterior se tinham mudado, deixando o clube pendurado e sem dinheiro para grandes compras. Beane quer formar uma equipa competitiva, mas está longe de poder entrar em aventuras e adquirir os jogadores top que se encontram no mercado. Cruza-se um dia com Peter Brand (Jonah Hill), um coca-bichinhos dos computadores e da análise estatística de jogos e jogadores, e pensa que pode trocar os sábios conselhos de velhos olheiros e treinadores por um conjunto de operações matemáticas. A coisa começa por dar para o torto, com mais de uma dezena de derrotas consecutivas, mas depois de algumas afinações e de um puxão de orelhas no balneário, tudo se modifica e a equipa de imprestáveis arrebata o record de vitórias sucessivas, vinte de uma assentada, vindo a morrer na praia, no derradeiro jogo para o campeonato, ganho pelos de New York.
Portanto, Billy Beane tinha razão, mas não tanta que lhe permitisse chegar ao título. Fica a proeza e a persistência numa ideia, mas fica igualmente o sabor amargo de não ter conseguido ficar com o ceptro na mão. Digamos que é o sonho americano, mas de alguma forma nuanceado.
Não deixa de dar que pensar, tanto mais que o filme é muito bem conduzido por Bennett Miller (que já se tinha feito notar com “Capote”), mantém um estilo sóbrio que se afasta por completo dos exaltantes filmes sobre desporto a que estamos todos habituados (uma equipa de velhas glórias que acaba por ganhar tudo, fruto de muita vontade e coragem, com aleluias no final), criando um ambiente por vezes de cortar à faca, sem recurso a efeitos de qualquer espécie (veja-se como o silêncio e a ausência de fundo musical pode funcionar as mil maravilhas), jogando quase tudo na interiorização e no extraordinário trabalho dos intérpretes.
O retrato de Billy Beane que Brad Pitt nos oferece é excepcional, intenso, rigoroso, interiorizado, mas de uma simplicidade de processos notável, no que é magnificamente acompanhado por Jonah Hill. Nada nos surpreende se ambos aparecerem nomeados para os Oscars. Se o não forem, será de enorme injustiça. Philip Seymour Hoffman, num pequeno papel, é igualmente muito bom (como sempre, aliás).
Eis, portanto, um filme que não nos oferece uma conclusão óbvia, mas que nos faz pensar sobre os dados que apresenta. Quase me arriscava a dizer que este é mais um filme sobre o mundo dos negócios e como ele se vai transformando, do que um filme sobre desporto. Nele o cerebral impera sobre o emocional. Sem nos dizer que os velhos dinossauros estão certos, nem que os jovens recém chegados trazem a verdade no bolso (ou no pc). Mas que nos mostra, sem sombras de dúvidas, que os tempos estão a mudar, e que a vida, nestas condições, vai ser cada vez mais difícil, numa altura em que o que conta fundamentalmente são os números e o que eles representam como empate de capital e lucro à vista. Pode não ser a mensagem do filme, mas lá que esta subjacente, está.
Curiosidades suplementares: quando o livro de Michael Lewis foi comprado pela Columbia Pictures, a sua adaptação foi entregue a Stan Chervin, mas após a chegada de Brad Pitt ao projecto (actor e produtor), Chervin  foi substituído por Steven Zaillian, tendo sido a realização entregue a David Frankel.  Posteriormente, parece que Steven Soderbergh substituiu Frankel mas, poucos dias antes do início da rodagem, a Columbia dispensou Soderbergh porque na concepção dos responsáveis da produtora o argumento comportava “elementos considerados não tradicionais para um filme de desporto, como entrevistas com jogadores autênticos. Soderbergh saiu e entrou Bennett Miller, e o argumentista Aaron Sorkin, que escreveu uma terceira versão do argumento. A que agora vimos.


MONEYBALL - JOGADA DE RISCO
Título original: Moneyball
Realização:
Bennett Miller (EUA, 2011); Argumento: Steven Zaillian, Aaron Sorkin, Stan Chervin, segundo obra de Michael Lewis ("Moneyball: The Art of Winning an Unfair Game"); Produção: Michael De Luca, Rachael Horovitz, Alissa Phillips, Brad Pitt, Scott Andrew Robertson, Scott Rudin, Mark Bakshi, Andrew S. Karsch; Música: Mychael Danna; Fotografia (cor): Wally Pfister; Montagem: Christopher Tellefsen; Casting: Francine Maisler; Design de produção: Jess Gonchor; Direcção artística: Brad Ricker, David Scott; Maquilhagem: Kathrine Gordon, Francisco X. Pérez; Direcção de produção: Heidi Erl, Jason Tamez, David Witz; Assistentes de realização: Courtenay Miles, Scott Andrew Robertson, Jonas Spaccarotelli, Brian Taylor; Departamento de arte: Gary Deaton, Lisa Fiorito, Amanda Hunter, Megan Romero, Jon Stein, Cheree Welsh, Ben Wolcott; Som: Ron Bochar; Efeitos especiais: Robert Cole; Efeitos visuais: Steve Carter, Gloria Cohen, Edwin Rivera, Meg Tyra; Companhias de produção: Columbia Pictures, Scott Rudin Productions, Michael De Luca Productions, Film Rites, Specialty Films; Intérpretes: Brad Pitt (Billy Beane), Jonah Hill (Peter Brand), Philip Seymour Hoffman (Art Howe), Robin Wright (Sharon), Chris Pratt (Scott Hatteberg), Stephen Bishop (David Justice), Brent Jennings (Ron Washington), Ken Medlock (Grady Fuson), Tammy Blanchard (Elizabeth Hatteberg), Jack McGee, Vyto Ruginis, Nick Searcy, Glenn Morshower, Casey Bond, Nick Porrazzo, Kerris Dorsey, Spike Jonze, Arliss Howard, Reed Thompson, James Shanklin, Diane Behrens, Takayo Fischer, Derrin Ebert, Miguel Mendoza, Adrian Bellani, Tom Gamboa, Barry Moss, Artie Harris, Bob Bishop, George Vranau, Phil Pote, Art Ortiz, Royce Clayton, Marvin Horn, Brent Dohling, Ken Rudulph, Lisa Guerrero, Christopher Dehau Lee, Joe Satriani, etc. Duração: 133 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner Filmes de Portugal; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 12 de Janeiro de 2012.

sexta-feira, janeiro 13, 2012

CINEMA: SHERLOCK HOLMES: JOGO DE SOMBRAS

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SHERLOCK HOLMES: JOGO DE SOMBRAS
 
Devo dizer que o anterior Sherlock Holmes, já com a assinatura de Guy Ritchie me tinha divertido. Sou um admirador incondicional de Arthur Conan Doyle, sobretudo dessa fascinante criação que é Sherlock Holmes, mas não me repugnou a sua “actualização” de personagens e situações. Não sei obviamente o que diria Arthur Conan Doyle se tivesse visto as muitas adaptações que o seu genial detective já justificou ao longo dos tempos, não sei quantas voltas já deu, ou daria, na tumba, se fosse um actual espectador de cinema, mas também gostaria muito de saber como seria o seu Sherlock Holmes, escrito hoje. Nada disso saberei, porque há mistérios insondáveis, mas sei de certeza que não gostei quase nada deste “Sherlock Holmes: Jogo de Sombras” que, à força de ser tão agitado, tão explosivo, tão turbulento, me aborreceu de morte. Na primeira hora já não sabia onde por as pernas, o corpo doía-me na cadeira (que é o pior que pode acontecer quando se vai assistir a um espectáculo), e já me parecia mais interessante olhar para o tecto do que para o ecrã, o que numa sala de cinema é sempre sintomático.
Na verdade até simpatizo com Guy Ritchie e com alguns filmes seus anteriores. Mas esta ânsia de criar uma aventura truculenta, onde tudo mexe até á exaustão, e o diálogo é quase incompreensível, tal o tratamento que lhe é dado, onde a história avança aos repelões, onde a pirotecnia desafia qualquer lógica de narrativa, enfim, custa muito a suportar este tormento. Um filme em que a montagem é de tal forma movimentada que nem se consegue analisar o trabalho dos actores, pois não há tempo para olhar o que quer que seja que não esteja a explodir, a correr, mesmo de burro, a disparar, a cair, enfim.
Diga-se porque me parece de justiça, que a segunda parte é melhor que a primeira, que vi com algum agrado uma sequência altamente explosiva durante uma fuga numa floresta, com alguns efeitos realmente interessantes, e que o confronto final entre Sherlock Holmes e Moriarte tem alguma graça com o seu tabuleiro de xadrez de permeio. Mas é muito pouco para tanto escarcéu inútil, e, mais do que isso, contraproducente. 


SHERLOCK HOLMES: JOGO DE SOMBRAS
Título original: Sherlock Holmes: A Game of Shadows
Realização: Guy Ritchie (EUA, 2011); Argumento: Michele Mulroney, Kieran Mulroney, segundo personagens criadas por Arthur Conan Doyle; Produção: Steve Clark-Hall, Susan Downey, Peter Eskelsen, Dan Lin, Joel Silver, Lionel Wigram, Bruce Berman; Música: Hans Zimmer; Fotografia (cor): Philippe Rousselot; Montagem: James Herbert; Casting: Reg Poerscout-Edgerton; Design de produção: Sarah Greenwood; Direcção artística: Netty Chapman, James Foster, Nick Gottschalk, Matthew Gray, Niall Moroney; Decoração: Alison Harvey, Katie Spencer; Guarda-roupa: Jenny Beavan; Maquilhagem: Christine Blundell; Direcção de Produção: Mark Mostyn; Assistentes de realização: Sarah Brand, Nicole Chapman, Barney Hughes, Paul Jennings, Max Keene, Paviel Raymont, Chad Stahelski; Departamento de arte: Shurouq Algusane, Netty Chapman; Som: James Harrison, Oliver Tarney, Mark Taylor; Efeitos especiais: Mark Holt; Efeitos visuais: Charlotte Adams, Laya Armian, Chas Jarrett, Natalie Lovatt, Sirio Quintavalle; Companhias de produção: Warner Bros. Pictures, Village Roadshow Pictures, Silver Pictures, Wigram Productions, Lin Pictures; Intérpretes: Robert Downey Jr. (Sherlock Holmes), Jude Law (Dr. John Watson), Noomi Rapace (Madam Simza Heron), Rachel McAdams (Irene Adler), Jared Harris (Professor James Moriarty), Stephen Fry (Mycroft Holmes), Paul Anderson (Coronel Sebastian Moran), Kelly Reilly (Mary Watson), Geraldine James (Mrs. Hudson), Eddie Marsan (Inspector Lestrade), William Houston (Constable Clark), Wolf Kahler (Doutor Hoffmanstahl), Iain Mitchell, Jack Laskey, Patricia Slater, Karima Adebibe, Richard Cunningham, Marcus Shakesheff, Mark Sheals, George Taylor, Michael Webber, Mike Grady, Alexandre Carril, Victor Carril, Thorston Manderlay, Affif Ben Badra, Daniel Naprous, Lancelot Weaver, Vladimir 'Furdo' Furdik, Thierry Neuvic, Martin Nelson, Mark Llewelyn-Evans, etc. Duração: 129 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner Filmes de Portugal; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 5 de Janeiro de 2012.

quinta-feira, janeiro 12, 2012

CINEMA: MELANCOLIA

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MELANCOLIA


“Melancolia”, de Lars von Trier, despertou os mais desencontrados comentários, aquando da sua estreia no Festival de Cannes, onde uma mais do que infeliz intervenção do realizador, confessando-se admirador de Hitler, iria desencadear uma justificada tempestade. Lars von Trier é useiro e vezeiro em declarações bombásticas, e esta, se foi ou não “autêntica”, excedeu todas as legitimidades. O filme acabou por ganhar apenas o prémio para Kirsten Dunst, como melhor actriz do festival, mas iria sofrer, um pouco por todo o lado, com a pesada herança dessa infeliz conferência de imprensa.
Ideologicamente, Lars von Trier nunca me pareceu um indivíduo de grande confiança. Acho os seus filmes quase sempre soberbos de um ponto de vista plástico, mas fiquei de pé atrás em relação a alguns, nomeadamente “Europa”.
Falemos então de “Melancolia” que, para já, a crítica norte-americana considerou “o melhor filme estreado em 2011”. Veremos o que vai acontecer aquando da atribuição dos Oscars.
Melancolia é um estado de espírito, a que alguns chamam doença, qualquer coisa como depressão, que os românticos enfatizaram nas suas criações literárias e artísticas, e a que Lars von Trier associa o nome de um planeta que se aproxima perigosamente da Terra.
É curioso saber-se que os gregos é que criaram a palavra e esta reúne “mélas”, que quer dizer "negro", e “cholé”, que significa "bílis", resultando algo como “bílis negra”. Foi Hipócrates, no século V a.C., quem classificou melancolia como doença, ao criar a teoria dos “quatro humores corporais”, que eram sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. O equilíbrio ou desequilíbrio entre as partes era responsável pela saúde ou pela doença. Julgava-se que a influência de Saturno levava o baço a segregar mais bílis negra, alterando o humor do indivíduo, levando-o ao estado de melancolia, em que a pessoa acometida pelo mal perdia o entusiasmo e se mostrava incapaz de qualquer actividade.  Os Românticos recuperam o conceito, introduzindo-lhe gradações diversas: a melancolia seria doença, mas poderia ser enriquecedora para o espírito e a alma. Freud também não foi indiferente a esta melancolia (que os poetas medievais chamavam “merencoria”, veja-se D. Duarte). Segundo Sigmund Freud, a melancolia assemelhava-se ao processo do luto, sem que houvesse necessariamente uma perda. Pessoas com sintomas de melancolia falam de si próprias como "inúteis", "incapazes de amar e de sentirem prazer", "incapazes de fazer algo bem, ou de bom para os outros", "irritantes", etc.
Passemos ao filme que o próprio Lars von Trier considerou um “filme catástrofe”, que na verdade não deixa de ser. Não tanto uma obra sobre “o fim do mundo” provocado pelo aparecimento do planeta Melancolia que se aproxima a passos largos da Terra e ameaça explodir no embate, mas sobretudo um fim do mundo provocado por uma outra melancolia, essa interior, que o realizador documenta em dois episódios distintos e um prólogo que sintetiza, sem palavras e ao ralenti enquanto se ouve Wagner como banda sonora, tudo quanto se irá passar posteriormente. Aí se perceberá que os seres humanos se encontram indissociavelmente ligados à Terra (Justine arrasta raízes atrás de si) e ao espaço, ao universo circundante (a mesma Justine irradia raios dos seus dedos que interagem com o infinito).
Tudo se passa em dois dias, cada um deles dedicado a uma irmã, primeiro Justine, depois Claire. A primeira, publicitária, casa nesse dia e dirige-se com o noivo para um palacete isolado no campo, onde o cunhado e a irmã lhe organizaram uma boda de arromba. Tudo parece correr pelo melhor, Justine (Kirsten Dunst) e Michael (Alexander Skarsgård) parecem felizes quando a limusina os conduz para o destino sonhado como cenário para ideal para assinalar o início da sua vida a dois. Mas a limusina é demasiado grande para as veredas por onde o carro tem de passar e essa desproporção irá marcar o aparecimento de um mal-estar que depois se irá intensificar ao longo do jantar. Justine encontra o pai (John Hurt) e a mãe (Charlotte Rampling), que estão divorciados e, cada um pelo seu lado, de formas diversas, abrem fendas na aparente harmonia reinante. O patrão de Justine, dono da agência onde esta trabalha, anda atrás de um slogan e não larga a nova directora criativa enquanto esta não assegurar o trabalho. Justine retira-se, afasta-se dos convivas, olha para o marido de uma forma diversa, vê-se que está não só descontrolada, mas profundamente perturbada pelo caminho que a sua vida toma. O jantar é filmado de câmara à mão, captando uma instabilidade crescente, descobre-se não só o já aludido mal-estar individual e colectivo, como a hipocrisia, os jogos de interesses, a importância dos negócio e do dinheiro. Claire (Charlotte Gainsbourg) não hesita em confessar à irmã que às vezes a odeia, enquanto John (Kiefer Sutherland), o seu marido, lhe atira a cara quão caro foi o casamento para redundar no fiasco que se vê. 
O casamento termina de forma abrupta e esta primeira parte de “Melancolia” segue de perto as pisadas de um outro filme dinamarquês, “A Festa”, de outro cineasta do “Dogma 95”, Thomas Vinterberg. “Melancolia” nada tem a ver com os preceitos desse “dogma”, optando deliberadamente por um tipo de super-produção, com um elenco de super-vedetas (que, diga-se de passagem, vão super-bem) e valores de produção muito acima da média, inclusive ao nível dos efeitos especiais, que não têm nada de “explosivos”, mas interiorizam sabiamente o clima, entre o quotidiano e o fantástico. Sobretudo nesta primeira parte, onde ambientes, guarda-roupa, fotografia são excelentes e permitem imagens de um deslumbramento plástico que, sendo timbre de Lars von Trier, aqui adquirem invulgar requinte. Os exteriores são fascinantes, muito sofisticados, o que já se anunciava desde o inquietante prólogo.
Na segunda parte, tudo se modifica, desapareceram os convidados, ficam cinco personagens, e um planeta ameaçador no horizonte. Desenvolve-se o confronto entre Justine, inquieta e sôfrega, e Claire, calma e organizada. Mas a proximidade da catástrofe baralha os dados, metaforicamente a “melancolia” tudo invade e o Apocalipse é certo.
O visionário Lars von Trier nada mais descobre no futuro da Humanidade do que a sua extinção, com um olhar pessimista e derrotista. Muito inquietante também, tal o clima de opressão que imprime à obra. Angustiante e sufocante. O espectador é confrontado com o ar irrespirável, por obra e graça do talento do cineasta para compor imagens e as manipular, mas igualmente dos seus intérpretes.
Se Lars von Trier estivesse calado e realizasse apenas filmes, ganharia mais, mesmo que estes estejam impregnados desse derrotismo épico que terá levado Wagner a ser adoptado por Hitler. Mas não deixa de ser curioso que, neste ano passado, vários cineastas, na esteira de “2001”, de Kubrick, se tenham virado para o espaço para esconjurar ameaças latentes. Este sintoma de um mal-estar generalizado não é um bom presságio. Ainda que o cinema tenha ganho algumas obras excepcionais.
MELANCOLIA
Título original: Melancholia
Realização: Lars von Trier (Dinamarca, Suécia, França, Alemanha, 2011); Argumento: Lars von Trier; Produção: Bettina Brokemper, Rémi Burah, Madeleine Ekman, Tomas Eskilsson, Meta Louise Foldager, Peter Garde, Peter Aalbæk Jensen, Lars Jönsson, Marianne Slot, Louise Vesth; Fotografia (cor): Manuel Alberto Claro; Montagem: Morten Direcção artística: Simone Grau; Decoração: Louise Drake; Guarda-roupa: Manon Rasmussen; Maquilhagem: Linda Boije af Gennäs, Camilla Eriksson, Dennis Knudsen; Direcção de Produção: Jessica Balac, Mouns Overgaard, Maj-Britt Paulmann; Assistentes de realização: Jonas Eskilsson, Peter Hjorth, Pontus Klänge, Anders Refn, James Velasquez; Departamento de arte: Klas Jansson; Som: Kristian Eidnes Andersen; Efeitos especiais: Hummer Høimark; Efeitos visuais: Peter Hjorth, Michael Holm, Andreas Hylander, Elin Lindahl, Martin Madsen, Daniel Nielsen, Malin Persson; Companhias de produção: Zentropa Entertainments, Memfis Film, Zentropa International Sweden, Slot Machine, Liberator Productions, Zentropa International Köln, Film i Väst, Danmarks Radio (DR), arte France Cinéma, Sveriges Television (SVT), Canal+, Centre National du Cinéma et de L'image Animée (CNC), CinéCinéma, Edition Video, Nordisk Film Distribution, Danish Filminstitute, Eurimages, Nordisk Film- & TV-Fond, Swedish Film Institute, Filmstiftung Nordrhein-Westfalen; Intérpretes: Kirsten Dunst (Justine), Charlotte Gainsbourg (Claire), Alexander Skarsgård (Michael), Brady Corbet (Tim), Cameron Spurr (Leo), Charlotte Rampling (Gaby), John Hurt (Dexter), Stellan Skarsgård (Jack), Kiefer Sutherland (John), Udo Kier, Jesper Christensen, James Cagnard, Deborah Fronko, Charlotta Miller, Claire Miller, Gary Whitaker, Katrine Sahlstrøm, Christian Geisnæ, etc. Duração: 136 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 1 de Dezembro de 2011.

sábado, janeiro 07, 2012

TEATRO: DUAS PEÇAS NA "BARRACA"


TEATRO “A BARRACA”
“D. MARIA, A LOUCA”
No Teatro “A Barraca” duas peças em cena com motivos mais do que suficientes para despertarem o interesse dos espectadores. Por razões diferentes, é certo.
Estreada em Junho, para uma curtíssima série de espectáculos, mas reposta em Novembro para a sua carreira regular, “D. Maria, A Louca”, um original do brasileiro António Cunha, fala da rainha portuguesa D. Maria I, a primeira mulher a reinar de facto no trono de Portugal, e que teve, desde sempre, uma valoração muito diversa e contraditória até em relação aos seus reais atributos. Por um lado, há que lhe dar o crédito de uma série de iniciativas altamente meritórias, como a criação da Casa Pia, da Academia das Ciências, da Fábrica das Sedas, da valorização do ensino feminino, impondo-se por um humanismo não muito vulgar na época. Por outro lado, esta filha de D. José I, herdeira de um dos mais invulgares legados da nossa História, assinado em larga medida pelo Marquês de Pombal, que vai dos Távoras ao Terramoto de 1755, passando pela epidemia de varíola que dizimou a população de Portugal e a sua própria família, pelos conflitos com a aristocracia e a igreja, pelos ventos da mudança que advinham da França revolucionária, acabaria louca, refugiada no Brasil, após o exílio da família real portuguesa, que ali procurou refúgio, perante a ameaça das invasões francesas.
D. Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana de Bragança, que nascera em Lisboa, a 17 de Dezembro de 1734, viria a falecer a 20 de Março de 1816, suicidando-se, atirando-se ao mar no cais da Praça XV, na cidade do Rio de Janeiro. Oscilando entre”A Piedosa” e “A Louca”, D. Maria I é uma personagem certamente fascinante para historiadores, romancistas, dramaturgos ou mesmo cinéfilos. Joaquim Benite já havia encenado uma ópera sobre a mesma figura, no Festival de Almada de 2011.
É no barco que a conduziu a Terras de Vera Cruz que o autor a coloca, por entre momentos de loucura e lucidez, percorrendo mentalmente parte da sua vida e das suas resoluções, habitada por fantasmas e atormentada pelo fervor religioso. A peça não convence muito, é demasiado “poética” e algo arrevesada na sua linguagem, mas permite a Maria do Céu Guerra uma excelente interpretação trágica, mas com os seus laicos de trágica-cómica, sempre comedida e sensível. A encenação da mesma Maria do Céu Guerra é igualmente bastante interessante, económica num cenário bem imaginado por José Costa Reis. Se a peça não me convence muito, tudo o resto é merecedor da melhor atenção.
“D. Maria, a Louca”
Intérpretes: Maria do Céu Guerra, Adérito Lopes; Texto: António Cunha; Encenação: Maria do Céu Guerra; Direcção Plástica, Cenografia e Figurinos: José Costa Reis; Assistência de encenação: Marta Soares; Adereços: Nuno Elias; Desenho de Luz: Luís Viegas; Operação de Luz: Fernando Belo; Sonoplastia e operação: Ricardo Santos; Montagem: Mário Dias; Estreia a 20 de Julho, Teatro Cinearte; De Quinta-feira a Sábado às 21h30; Domingo às 16h30; Na Sala 1 do Teatro Cinearte; M/12.

 “RUMOR”
“Rumor”, de Mário de Carvalho, começa por ser um excelente texto, muito bem escrito, com uma muito boa utilização da palavra como elemento plástico e cénico, o que não é vulgar em textos portugueses. Posso mesmo dizer que “Rumor” é, para mim, um dos melhores textos dramáticos nacionais dos últimos anos.
A forma como Mário de Carvalho aborda o tema é de uma ironia fina que permite ao elenco um trabalho saboroso e divertido, o que beneficia todo o espectáculo. Estamos num terraço de uma cidade abstracta, certamente durante o Império Romano. Várias personagens, bem instaladas na vida, o que ficam a dever ao governador da cidade que os favorece em troca da sua lealdade e de algumas outras cortesias que se preferem não nomear (como as visitas da bela mulher de um comerciante que regularmente passa a noite nos aposentos daquele que não se sabe se está ou não acima ou abaixo dos deuses!), conversam. Descontraidamente, bebem vinho, não tão bom como o que se bebe no palácio, cuja luz irradia pela cidade, e orienta os barcos no mar, mas ainda assim muito bom, muito melhor que a zurrapa que se bebe nas tabernas do povinho, e elogiam a grandeza do governador, homem de muitas virtudes e de uma largueza de vistas excepcionais. Apenas uma nota dissonante: um jovem, cujo pai, prestigiado general, havia sido assassinado às ordens desse mesmo governador.
Mas a harmonia parece grande entre os convivas, até que a luz do palácio esmorece e de todo se apaga. Corre o rumor que o governador morreu. Como? Quem será o sucessor? Alguém amigo do velho general assassinado? Então será melhor dosear as palavras, refrear os elogios, virar o tom da conversa, enfim o governador sempre tinha os seus aspectos menos virtuosos e quem sabe se quem virá aí não será muito melhor. Pode até ser alguém da confiança do filho do general que afinal passa a ser uma personagem muito querida, “vai minha filha, e abraça-o”.
Peça deliciosamente cínica sobre os vira casacas e aqueles que se alapam ao poder para dele retirar dividendos, “Rumor” é um exercício de teatro inteligente, divertido, e contundente. A encenação de Maria do Céu Guerra é muito boa, discreta, subtil, servindo muito bem o texto, o que todo o elenco acompanha com galhardia. Sente-se que os actores, João D’Ávila, Jorge Gomes Ribeiro, Paula Guedes, Rita Fernandes, Ruben Garcia, Sérgio Moras e Vânia Naia, se divertem neste jogo de tapa / destapa e isso acaba por beneficiar o espectáculo.
Vão à “Barraca” ver teatro. O talento e a persistência da Céu Guerra, bem acompanhada pelos cúmplices de aventura, merece-o.
RUMOR
Texto: Mário de Carvalho; Encenação: Maria do Céu Guerra; Direcção Plástica: José Costa Reis; Intérpretes: João D’Ávila, Jorge Gomes Ribeiro, Paula Guedes, Rita Fernandes, Ruben Garcia, Sérgio Moras, Vânia Naia; Assistência de Encenação: Sérgio Moras; Apoio de movimento: Catarina Santana; Apoio musical: Ana Isabel Dias; Aderecista e assistente de cenografia e figurinos: Marta Fernandes da Silva; Desenho de luz: Maria do Céu Guerra / Fernando Belo; Operação de luz e som: Paulo Vargues; Montagem e Carpintaria: Mário Dias: De 5ª a Sábado às 21h30; Domingo às 16h00; Na Sala 2 do Teatro Cinearte; M/12.

sexta-feira, janeiro 06, 2012

CINEMA: A PELE ONDE EU VIVO

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A PELE ONDE EU VIVO
Para muita gente, crítico ou não, o último filme de Pedro Almodôvar, “La Piel que Habito”, é uma quase traição ao seu anterior percurso cinematográfico. Que é muito pouco almodovariano, muito frio, muito distanciado do que habitualmente faz, e etc. Na verdade, para ser franco, há alguns dispositivos novos nesta obra, mas não vejo por que razão essa novidade implica com a coerência de Almodôvar, muito pelo contrário. Julgo “A Pele em que Vivo” um dos filmes mais almodovariano dos últimos tempos, aceitando que o cineasta vai amadurecendo nalguns aspectos, criando novas tensões, desenvolvendo no entanto sempre as mesmas obsessões e fantasmas, os seus temas eternos e depurando estilo e narrativa.
O “thriller” não é novidade em Almodôvar. Já o havia tratado abertamente em “Em Carne Viva”, adaptação de um romance de Ruth Rendel, e já o havia abordado por diversas vezes em sequências de muitas outras obras suas, onde o tom de “film noir” está presente. É obvio que Almodôvar é um entusiasta do “policial”, quando este lhe permite analisar o lado mais obscuro da condição humana.
Curiosamente, “La Piel que Habito” parte de um romance de Thierry Jonquet, escritor francês de policiais, muito elogiado em França, pouco conhecido em Portugal, oriundo de uma família de comunistas, filho de um mecânico parisiense, que se tornou membro da “Troskyite Lutte Ouvrière”. Morreu cedo (1954–2009), mas deixou vasta obra de que “Tarantula”, em francês, ou “Mygale” ou “Serpent's Tail”, nas suas versões inglesas, datado de 1995, parece ser a sua obra de maior destaque. Foi ela que serviu de base a esta adaptação de Pedro Almodôvar (com a colaboração do seu irmão Agustín Almodôvar).
Mas se o gosto de Almodôvar pelo policial é conhecido, a sua predilecção por melodramas de faca e alguidar é manifesta, desde a sua mais tenra idade de cineasta. Ele não abdica de uma boa intriga, com famílias disfuncionais, múltiplas peripécias onde paixões funestas e amores à desfilada se entrecruzam em situações limite, bem à maneira do romance de cordel popular. Esta sua nova obra parece atingir um clímax nesse aspecto.
Depois, há o desejo (a sua produtora chama-se mesmo “El Deseo”), o sexo, o proibido, o tabu, a provocação, tudo rodando à volta do corpo e de um aspecto muito preciso da transformação do corpo (travestis e transformistas são habituais frequentadores da sua filmografia). A base sobre que assenta “A Pele em que Vivo” é precisamente o corpo e a sua transformação.
O protagonista desta história, o médico cirurgião Robert Ledgard (um Antonio Banderas comedido e rigoroso, como há muito se não via), assemelhando-se em muito a um Frankenstein dos tempos modernos, procura “criar a mulher” (já Terence Fisher o tentara numa obra notável, mas recriando a situação com o tradicional Dr. Frankenstein). Mas a obsessão de Robert Ledgard não é pegar em diferentes partes de vários corpos e criar o modelo de mulher ideal. É agarrar num homem e transformá-lo em mulher, através de uma operação ginecológica, mas sobretudo, porque essa é a área das suas pesquisas, através de um nova pele, resistente à dor, ao calor, às picadas, às ameaças do exterior.
O que está na base desta obsessão? Gal, a mulher teve um acidente de carro e ficou carbonizada, ele tentou salvá-la por todos os meios ao seu alcance, mas acabaria por falhar, pois um dia a mulher olha-se ao espelho e suicida-se, atirando-se de uma janela abaixo. Fica a dor da perca e o remorso do falhanço. E fica a filha Norma (um referência operática, mais ou menos óbvia) que um dia é violada e fica para sempre traumatizada, acabando por seguir o caminho da mãe. Robert Ledgard sabe quem foi o violador, persegue-o, encurrala-o numa cave e exerce sobre este prisioneiro pessoal todas as experiências possíveis, até ele adquirir os contornos de Vera (a belíssima e talentosa Elena Anaya), que mais tarde se chamará a si própria Vera Cruz. Ela será Vera (de verdadeira) para Ledgard, e Cruz (de calvário) para Vicente (Jan Cornet). 
Há uma outra história paralela a esta, que com ela se cruza por diversos meios. A governanta, Marília (Marisa Paredes, como sempre magnífica), e principal cúmplice de Ledgard, é o resguardo seguro do seu palacete e a guardiã das suas experiências, que acompanha através de um ecrã ligado à bela masmorra onde Vera se vai transformando. Mas Marília tem um filho, Zeca (uma personagem de carnaval brasileiro, interpretada por Roberto Álamo), que um dia se esconde sob as saias da mãe, que viola Vera e que Ledgard descobre. O que Ledgard nunca descobrirá é que Zeca é seu irmão, e Marília sua mãe.
Não interessa aprofundar mais a história rocambolesca, e pícara em muitos aspectos. Este enunciado dá bem a medida das obsessões de Almodôvar e da forma como as aborda neste filme. O corpo que se transforma, os sexos que se diluem um no outro, a violência exercida sobre a pele como elemento erótico por excelência e, mais do que isso, a transformação imposta e a culpa que nasce deste acto. E a revolta. Nada de mais almodovariano se poderia encontrar.
Que Pedro Almodôvar é menos barroco do que habitualmente na construção dos cenários e da narrativa, é certo, ainda que a personagem de Zeca e a “boutique” da mãe de Vicente escapem para o ambiente dos seus primeiros filmes. Mas esta deslizagem de Almodôvar para um cinema mais clássico era já notória nos últimos títulos da sua filmografia. A mestria da sua arte continua, porém, inatacável, a direcção de actores é primorosa, e o resultado final é uma obra inquietante, belíssima na sua estética depurada, onde o corpo da mulher (da mulher viva, mas também da mulher “representada” em várias obras de arte que se dispersam pelas paredes da casa de Robert Ledgard) adquire um posição de eixo central que irá comandar toda a respiração deste filme profundamente perturbador.
A PELE ONDE EU VIVO
Título original: La Piel que Habito
Realização: Pedro Almodôvar (Espanha, 2011); Argumento: Pedro Almodóvar, Agustín Almodôvar, segundo romance de Thierry Jonquet ("Tarantula"); Produção: Agustín Almodóvar, Bárbara Peiró Aso, Esther García; Música: Alberto Iglesias; Fotografia (cor): José Luis Alcaine; Montagem: José Salcedo; Casting: Luis San Narciso; Design de produção: Antxón Gómez; Direcção artística: Carlos Bodelón; Guarda-roupa: Paco Delgado; Maquilhagem: Tamar Aviv, Manolo Carretero, David Martí, Montse Ribé; Direcção de Produção: Sergio Díaz, Toni Novella; Assistentes de realização: Manuel Calvo, Juan Carlevaris, David Esquivel, Eva Sánchez; Departamento de arte: Pablo Buratti, Vicent Díaz, Alejandra Loiseau; Som: Iván Marín; Efeitos especiais: Reyes Abades, Daniel Reboul, Joaquín Vergara; Efeitos visuais: Helen Marti Donoghue; Companhias de produção: Canal+ España, El Deseo S.A., Instituto de Crédito Oficial (ICO), Televisión Española (TVE); Intérpretes: Antonio Banderas (Robert Ledgard), Elena Anaya (Vera Cruz), Marisa Paredes (Marília), Jan Cornet (Vicente), Roberto Álamo (Zeca), Eduard Fernández (Fulgencio), José Luis Gómez (Presidente do Instituto de Biotecnologia), Blanca Suárez (Norma Ledgard), Susi Sánchez (mãe de Vicente), Bárbara Lennie (Cristina), Fernando Cayo (Médico), Buika (Cantora), Guillermo Carbajo, Agustín Almodôvar, Violaine Estérez, Sheyla Fariña, Esther Garcia, Teresa Manresa, Ana Mena, Chema Ruiz, David Vila, Jordi Vilalta, etc. Duração: 117 minutos; Distribuição em Portugal: Pris Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 17 de Novembro de 2011.


quarta-feira, janeiro 04, 2012

CINEMA: O DEUS DA CARNIFICINA

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O DEUS DA CARNIFICINA
"Le Dieu du Carnage” é uma perca de teatro da autoria de Yasmina Reza, francesa, a mesma que nos dera anteriormente um grande sucesso, “Art”, que esteve em cena nos palcos de todo o mundo, incluindo Portugal. "Le Dieu du Carnage” estreou igualmente no palco do “Teatro Aberto”, com boas referências.
A peça foi lançada em Paris, em 2008, com Isabelle Huppert e Eric Elmosnino no elenco, passando depois rapidamente aos palcos ingleses e americanos. Na Broadway, surgiu no ano seguinte, com um elenco de peso, James Gandolfini, Marcia Gay Harden, Hope Davis, e esta é uma das razões do sucesso da obra: actores magníficos a darem densidade e a criar tensão numa intriga que parte de um “fait divers” para desencadear uma situação de invulgar crispação.
Há muito nesta obra de Yasmina Reza que nos faz lembrar “Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?”: um cenário único, uma sala de estar, dois casais, um jogo de massacre entre as quatro personagens. Mas a obra de Albee tem uma outra profundidade.
Roman Polanski e Yasmina Reza adaptaram ao cinema a obra e ela aí está com todos os atributos da obra teatral e o saber do cineasta para dirigir actores e a perversidade sóbria para encenar situações limite.
Aqui o acontecimento de partida é uma luta entre miúdos num jardim. O genérico do filme de Polanski mostra-nos esse jardim em plano de conjunto, um grupo de miúdos que discute, um deles que se afasta um pouco, regressa furioso, munido de um varapau e desfere uma tacada no rosto de um outro. Sabe-se depois que partiu dentes, deslocou o maxilar, inchou a cara, e colocou em recuperação a vítima durante uns dias. Nada de muito excepcional, agora chamam-lhe “bullying”, antigamente era “andar à porrada”.
Os pais dos dois jovens encontram-se para discutir o assunto. Em casa da vítima. São casais da média burguesia, comerciantes, advogados, “gente de bem”, “civilizada”, que procura resolver o caso de forma amigável. Encontram-se, tomam uma bebida, discorrem sobre o tema que parece não os preocupar muito, tomam outra bebida, e acabam lentamente por deixar vir à tona de água a sua verdadeira personalidade e os traumas que a enformam. O que parecia largueza de vistas e propósitos generosos, acaba por se transformar numa querela infindável que coloca casal contra casal, mulheres contra homens, homem contra homem e mulher contra mulher, em sucessivas alianças que se fazem e desfazem, ao sabor dos interesses de momento.
Não me parece que a agressão seja tratada com um mínimo de ponderação. Afinal, um acto gratuito de violência juvenil deveria merecer maior atenção. Aqui serve apenas como pretexto para o desencadear das hostilidades entre os casais. Às tantas, já não se fala do assunto, que só é evocado para agravar a discussão. O que interessa já são os livros de arte vomitados, o marido que não larga o telemóvel, o antigo chefe de gang, o bolo que provoca indisposição ou o whisky que liberta as vozes. A metáfora mostra como a violência está latente e solta as amarras ao mais pequeno distúrbio, ou como a “civilização” e as “boas maneiras” são fachadas de polimento fino. Um exercício curioso, divertido, com algum humor negro à mistura e um profundo cinismo sobre a condição humana. Interessante, mas não mais do que isso.
O que sobressai, isso sim, é a qualidade da realização de Polanski, que numa sala e num corredor, com idas e vindas, ameaças de saídas e entradas, da cordialidade à exasperação, nos consegue envolver num clima de tensão que cada vez se adensa mais e, sobretudo, as extraordinárias interpretações dos quatro actores escolhidos: Jodie Foster e John C. Reilly, de um dos lados do ringue, Kate Winslet e Christoph Waltz, no outro canto. Não há vencedores na disputa, apenas vencidos, mas os intérpretes merecem todos nomeações.
Para que tudo pareça ainda mais anódino e inconsequente, no plano de conjunto final os miúdos voltam a encontrar-se no jardim e a confraternizarem como se nada tivesse acontecido. Branqueado o "bullying", fica a desavença.
Dá ideia que não faz mal que os miúdos continuem a esmurrar os queixos uns dos outros, desde que isso permita analisar o comportamento dos pais.
O DEUS DA CARNIFICINA
Título original: Carnage
Realização: Roman Polanski (França, Alemanha, Polónia, Espanha, 2011); Argumento: Yasmina Reza, Roman Polanski, segundo peça teatral de Yasmina Reza ("God of Carnage"); Produção: Saïd Ben Saïd, Oliver Berben, Martin Moszkowicz; Música: Alexandre Desplat; Fotografia (cor): Pawel Edelman; Montagem: Hervé de Luze; Casting: Fiona Weir; Design de produção: Dean Tavoularis; Decoração: Franckie Diago; Guarda-roupa: Milena Canonero; Maquilhagem: Laurent Bozzi, Alexis Kinebanyan; Direcção de Produção: Frédéric Blum, Abraham Goldblat, Varujan Gumusel, Vincent Lefeuvre; Assistentes de realização: Ralph Remstedt, Caroline Veyssière, Mareike Engelhardt, Sophie Le Guénédal; Departamento de arte: Laurent Fenestre, Yvan Hart, Delis Valerie ; Som: Thomas Desjonquères, Stephane Lioret; Efeitos visuais: Frederic Moreau, Mikael Tanguy; Companhias de produção: SBS Productions, Constantin Film Produktion, SPI Film Studio, Versátil Cinema, Zanagar Films, France 2 Cinéma, Canal+, CinéCinéma, France Télévisions, Polish Film Institute, Wild Bunch; Intérpretes: Jodie Foster (Penelope Longstreet), Kate Winslet (Nancy Cowan), Christoph Waltz (Alan Cowan), John C. Reilly (Michael Longstreet), Elvis Polanski (Zachary Cowan), Eliot Berger (Ethan Longstreet), Joseph Rezwin (voz de Walter), Nathan Rippy (voz de Dennis), Tanya Lopert (voz da mãe de Alan), Julie Adams (voz da secretária), etc. Duração: 79 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 29 de Dezembro de 2011.