segunda-feira, outubro 30, 2006

Cine Eco: Os Prémios

“O Ataque do Tigre”
do realizador russo Sasha Snow
foi o grande vencedor
do Festival de Seia -
Cine’Eco 2006


O Filme “O Ataque do Tigre” (Conflict Tiger) do realizador russo Sasha Snow é o grande vencedor do Cine’Eco 2006 – XII Festival Internacional de Cinema e Vídeo de Ambiente da Serra da Estrela, que se realizou em Seia de 20 a 29 de Outubro.

“O Ataque do Tigre” fala de um caçador inexperiente e insensato, que nas florestas do Leste Russo, provoca uma infame série de ataques de tigres nas pessoas do vilarejo. As autoridades locais convocam os serviços de Yuri Trush, um especialista em seguir e eliminar os tigres que perderam o seu medo do homem. O filme mostra a mais notável perseguição de Yuri a um tigre comedor de gente como base de um documentário de suspense.
Sasha Snow era fotografo de arquitectura antes de surgir como montador na BBC, em 1991. Em 1997 ganha o BAFTA/Post Office Scholarship para Melhor Filme de Estudante, com “Peace Under A Power Station”, enquanto estuda realização documental The National Film & Television School. Em 2002 diploma-se com o seu primeiro filme rodado na Rússia, “A St. Petersburg Symphony”. Seguem-se ‘Arctic Crime & Punishment’ e ‘Conflict Tiger’. “O Ataque do Tigre” arrecada assim o Grande Prémio Cine’Eco atribuído pela Câmara Municipal de Seia, no valor de € 3.750 Euros, além da campânula de ouro, símbolo máximo do festival.

Outro dos grandes vencedores do festival é o filme “Ainda Há Pastores?” de Jorge Pelicano, que ganhou o prémio Lusofonia, (que é visto como o segundo melhor prémio do Cine’Eco) no valor de € 2.500 Euros e a respectiva campânula.
O filme, considerado a melhor obra a concurso, produzida e realizada em país lusofono, retracta a vida de Herminio, um jovem pastor de 28 anos nos casais de Folgosinho, em plena Serra da Estrela, onde não há luz eléctrica, não corre água canalizada, não há estradas. “Um lugar que se perde no silêncio de um vale entre as montanhas da Serra, que em tempos foi um autêntico santuário de pastores. Contudo, Hermínio contraria o fim. Dizem que é o pastor mais novo, mas também o mais doido. O futuro de Hermínio é inquietante. Até quando o jovem Hermínio será pastor? Mas...ainda há pastores?”

O Prémio “Educação Ambiental” foi atribuído ao filme “Ouro Branco – O Verdadeiro Preço do Algodão” de Sam Cole (Reino Unido, 2005), por ter sido considerada a obra que melhor abordou, do ponto de vista didáctico - pedagógico os temas a concurso.

O Prémio “Água” foi para o filme “Águas Agitadas” do jornalista da SIC Bernardo Ferrão (Portugal, 2005) por ser a obra a concurso a promover melhor o tema dos recursos hídricos.

Uma Alquimia em Verde”, de Dave Dawson (Nova Zelândia, 2005) venceu o prémio “Vida Natural”, por ser a obra a concurso que no entender do júri melhor promove o tema da conservação da natureza e da bio-diversidade.

O Prémio “Polis” foi atribuído ao filme “Atingido” do realizador Michael Trabitzsch (Alemanha, 2005/2006), por ter sido considerado o melhor a promover o tema da requalificação urbana e valorização ambiental.

O Prémio “Antropologia Ambiental” foi atribuído ao documentário “O Cavalo Operário” de Alain Marie (França, 2006) por ser a obra a concurso que melhor promove o tema da inserção do homem no seu quotidiano.

O Prémio Vídeo Não Profissional foi conquistado pelo filme “Muitchareia” de Uliana Duarte (Brasil, 2006).

O Prémio “Camacho Costa” foi para o filme “Giovanni e o Mito Impossível das Artes Visuais”, de Gabriele Gismondi & Ruggero Di Maggio (Itália, 2005).

O Júri Internacional presidido pelo Professor Fernando Catarino atribuiu ainda Menções Honrosas aos seguintes filmes: - “O Amendoim da Cutia” de Komoi Panará e Paturi Panará (Brasil, 2005); “Da Pele à Pedra”, de Pedro Sena Nunes (Portugal, 2005); “Feridas Atómicas” de Marc Petitjean (França, 2005);

O Júri da Juventude atribuiu por sua vez os seguintes prémios:

“Grande Prémio” para o filme “Feridas Atómicas” de Marc Petitjean (França, 2005);
“Melhor Animação” para o filme de animação “49”, de Ichiro Iwano (Japão, 2006);
“Prémio Verde” para o filme “Uma Alquimia em Verde”, de Dave Dawson (Nova Zelândia, 2005);
“Melhor Curta metragem” para o documentário “Giovanni e o Mito Impossível das Artes Visuais”, de Gabriele Gismondi & Ruggero Di Maggio (Itália, 2005);
“Prémio Verdade Inconveniente” ao filme “Os Filhos da Montanha” de Juan S. Betancor (Espanha, 2005);
“Prémio Humanidade” ao filme “Os Refugiados do Planeta Azul” de Jean Philippe Duval e Heléne Choquette (França e Canadá, 2006);
Menções Honrosas para: “O Ataque do Tigre”, do realizador Sasha Snow (Russia, 2005); “Terras A Separam-se: Uma Saga Islandesa” de Zoltán Török (Hungria e Suécia, 2005); “Ouro Branco” de Sam Cole (Reino Unido, 2005); “H2O – Água à Venda”, de Leslie Frank (Alemanha, 2005) e “Ainda Há Pastores?” de Jorge Pelicano (Portugal, 2006).
Comunicado do Festival.

sexta-feira, outubro 20, 2006

UM DEBATE: O ABORTO

O REFERENDO
SOBRE O ABORTO
ilustração da Xilla, pedida de emprestimo do seu blog "Confidências"
No "Divas & Contrabaixos", a MRF está a publicar um conjunto de textos sobre o aborto, ou a IVG, que merecem toda a nossa atenção, agora que a questão voltou à praça pública. De acordo com quase tudo, descordo de um ou outro ponto, sobretudo estratégico. Por isso lá deixei este comentário:
Bons “posts” sobre o IVG, mas julgo que o caminho não é o melhor. Há motivos para muitas dúvidas e equívocos. O que se invoca a nosso favor, também pode ser invocado contra. Por exemplo, a doutrina do “Probabilismo”. Explicas: “Elaborada por teólogos católicos no século XVII, baseia-se no conceito de que uma obrigação moral que provoque dúvida não se pode impor como se fosse indiscutível. O princípio fundamental é "Onde há dúvida, há liberdade". Já viste que a liberalização da IVG provoca dúvidas? Logo há liberdade para a proibir. De resto “ Estas são posições antigas, mas cada vez mais válidas, na sociedade plural em que vivemos.” Por que razão as “posições antigas” são cada vez mais válidas? Muito pelo contrário, acho intolerável a Inquisição, apesar de ser uma posição antiga. Logo, o simples facto de serem posições antigas, não as faz melhores ou piores. Como também muito bem dizes, as questões tem de ser colocadas no seu tempo. E enfrentar abertamente as posições do seu tempo, neste caso do nosso tempo. Aí a opinião da Igreja, oficial, papal, não deixa dúvidas e é sobre essa que teremos de reflectir.
O caso do aborto, ou da IVG, só tem uma questão a que nos devemos reportar: cada casal, porque não há IVG sem homem e mulher, tem de decidir em liberdade o que quer fazer. Para haver essa liberdade, é preciso que ela esteja consignada na lei. De resto, não discuto posições católicas ou feministas ou outras quaisquer, porque a partir do momento que exista essa liberdade de opção, cada um fará o que quiser, o que a sua consciência e a sua condição ditarem. Para quê discutir a posição dos católicos, dos ateus, os xiitas, dos turcos ou dos índios? Não tenho nada a ver com o que cada um pensa. Tenho a ver com a liberdade de cada um poder pensar o que quiser. E não vou rebater os argumentos dos outros, pois estou a entrar no seu jogo. Não quero ter “a consciência de outros”, quero poder “exercer a minha”.Não quero mudar “a consciência de outros”, porque também não quero que me obriguem a mudar a minha. Quero lá saber se o aborto era permitido no século XII ou no XVII. Não vivo no século XII nem no XVII, e nesses séculos havia tanta outra coisa de que discordo, que se concordo com uma é mera coincidência. Todas estas discussões visam apenas fornecer argumentos ao NÃO. Eu voto SIM, inclusive para os católicos poderem continuar a não exercer a IVG, se quiserem. E outros a praticarem, se assim o julgarem necessário. E outros ainda nunca praticarem a cópula sequer, se não tiverem prazer nisso e não quiserem aumentar o índice demográfico. Enfim, voto sim porque quero a liberdade de eu decidir como acho justo e o meu contrário decidir o inverso. Não discuto argumentos. Discuto a liberdade de decidir. É a única coisa em causa neste referendo.
De resto, o teu trabalho de investigação é óptimo, e chamar a atenção para a decisão homem-mulher excelente. Falar “no corpo”, “na barriga” e “na liberdade da mulher” é mais uma vez fazer o jogo dos que acham que a mulher é a causa de todos os pecados. E a impediam de votar. Além de que, numa gravidez, “a barriga não é só da mulher”. Que eu saiba ainda não se atingiu essa “perfeição”. Essa “barriga” é sempre de dois, mesmo que um tenha vindo em “ampola” laboratorial. Bjs. LA
(nota: coloquei "aborto" no motor de busca e fui procurar imagens para ilustrar este texto. Por que será que, contra ou a favor, é tudo tão horrível?)
Esclarecimento (da MRF) :
LA, provavelmente tens razão, mas a conclusão a que chego é esta: "Os católicos portugueses, polacos, irlandeses e malteses são a minoria que, na Europa, ainda está presa à visão mais intransigente da Santa Sé."Porque existe de facto, mesmo na Santa Sé, teólogos com um pensamento distinto do "oficial". O "recurso ao mal menor" não é dos séculos XI ou XVII, é de agora. De resto, é com base nesse postulado que a Igreja, noutros países ditos católicos, enquadrou a lei "laica" que permite a realização do aborto a pedido da mulher.Porquê que isto me parece importante? Para deixar claro que não existem verdades absolutas. Para tranquilizar aqueles que, como eu, porque educados em meios conservadores, se descobrem a defender a despenalização do aborto, sempre com um nó na garganta e um ligeiro sentimento de culpa.Eu acho que foi também por isso que em Junho de 1998, apenas 31% dos eleitores foram votar.


# posted by MRF : 09:15
Perdeu-se o referendo de 1998 porque se entrou nesse debate, e porque a grande maioria dos que votavam Sim achavam que a questão estava ganha, e muitos não foram votar. Entrar outra vez no mesmo debate, só me parece contraproducente. O debate é: ter ou não liberdade para cada um decidir. Não há que debater pontos de vista, já que todos podem ser legítimos, se estribados em questões de fé ou de consciência. O que não é legítimo é impedir a liberdade de decisão de quem quer que seja. Essa é a grande arrogância de quem quer que faça as leis. Vou mesmo mais longe: o que pretendo é que os católicos permitam a liberdade de outros pensarem diferentemente. Não quero mais radicalismos religiosos, nem de Maomé, nem de Cristo. Nem de feministas exacerbadas. A questão é só uma: posso ou não agir de acordo com o que penso e sinto? É isso a democracia. A questão seria ainda mais radical. Mesmo que 90% dos portugueses seja contra o aborto, os restantes 10% terão direito de agir consoante a sua consciência. É essa liberdade que o referendo deve consignar. LA 10.20.06 - 3:29 pm #


Entre 20 e 29/X/06
em Seia
no Cine Eco
em 12ª edição


(saiba mais sobre a cidade de Seia)

Poesia Popular
encontrada na Internet:
Canção a Seia
(Jorge Camelo)

São neves que caiem
Aguarela de pintor
O trovão na Serra
São sonhos de amor
É luz da minha vida
A aragem da noite
É minha alma perdida.
Estribilho

Ouve uma prece
Ó Seia querida
Não quero deixar-te
Por que jurei amar-te
Toda a minha vida
Seia adorada
De mim tem piedade
Porque os que partiram
E nunca mais te viram
Morreram de saudade.
II

É teu tapete
O verde do vale
E as águas que passam
São fios de cristal
Quando o sol se põe
Vejo que ele sorri
Não quer ir embora
Fica a olhar para ti.

Sem Título
(Francisco Dias)

Adeus Cidade de Seia,
Capela de Santa Rita,
Por seres menina feia
O luar te virou bonita…

Fui da praça à Carvalha,
Ai solidão, solidão,
Encontrei lá a mortalha,
Do bairro de S. João.

As torres da Velha Igreja,
Lindas são como os amores,
Carnudos lábios se beijam,
Rosas sim que são flores.

A Cidade de Seia é bela,
Dizem do alto os pastores,
É a alegre sentinela
Do Portugal, meus amores…
Balada de Seia

Quem passar por Seia
De certo que anseia
Continuar a passar;
Porque Seia
É cidade de encantar.
É romagem de turistas,
É passagem de alpinistas,
Que à serra querem chegar;
Porque Seia
É terra de lembrar.
Tem castelos e muralhas,
Sinais de batalhas
Que Viriato travou
Tem igrejas e capelas,
Moças mui belas
Que Camões cantou.
Tem poetas e cantores,
Noites de amores
Que constróem os lares.
É cidade hospitaleira,
Onde se salta a fogueira
Nos santos populares.
Tem a carvalha no alto
E um castelo de valores.
Tem a Sant’Ana na serra,
E aos seus pés
Fontes de amores.

Seia, 09 de Julho de 1989

Cidade que és minha

Na noite oculta do tempo,
Vagueio
Pelas ruelas da cidade,
Que sonha dormindo,
Coberta do manto azul,
Onde moram as estrelas.
Meus ideais de rapaz,
Desfilam na penumbra-sombra
Da recordação deste repouso-paz…
Cidade que és minha,
Num amplexo de abafo
Como querendo fundir-te
À alma que me fez teu filho!
Cidade -que te renovas em cada hora
No compasso dum tempo
Incomum,
Ressurgida da história,
Que as brumas frias das madrugadas
De inverno cristalizaram,
Em estalactites de gelo vítreo.
Cidade memória dos que partiram,
Com a dor de te amarem,
Fica tu comigo, cidade para
Que vagueie
Na noite oculta do tempo.

Seia, Outubro de 1987
Como é fácil de perceber
todos os caminhos vão dar a Seia.
Siaba como:

Adeus, até ao meu regresso!

quarta-feira, outubro 18, 2006

LIVROS

LEITURAS

Com a organização do Festival de Seia (começa a 20), não tenho tido muito tempo para o blog. Nem tenho ido ao cinema, nem ao teatro, nem sequer visto DVDs em casa. Não será bem assim: ontem revi Rita Hayworth e Glenn Ford em “Affair in Trinidad”, de Vincent Sherman, e, se bem que não se aproxime, nem de perto nem de longe, de “Gilda” ou “Notorius”, modelos que obviamente procura “recuperar”, é um thriller que se vê bem, com um belíssimo preto e branco, e uma Rita Hayworth como sempre de cortar a respiração. Tinha então 34 anos, acabara de divorciar-se de Ali Khan, e pretendia regressar em glória. Duas magníficas cenas de dança / canção ("Trinidad lady" e, sobretudo, "I've Been Kissed Before," que tem tudo a ver com o fabulosa "Put the Blame on Mame", de "Gilda") chegariam para valer a pena, tanto mais que tem Glenn Ford por perto.
Mas se tenho saído pouco, lá vou lendo umas coisas. Na livraria folheei “Não Contem aos nossos Filhos”, a confissão de uma puta portuguesa que, acompanhada pelo marido, “atendeu” clientes de norte a sul de Portugal, sempre com o esposo, ou no quarto, a “interagir”, ou por perto, ambos com dificuldades económicas para manterem um belo apartamento (elogiado pelos visitantes), o carro e as duas crianças. Comprei para ler. Gosto de ler tudo. Curiosidade insaciável. Li. Em nome das dificuldades tudo se justifica (se calhar até estas confissões anódinas de quem nada tem de especial para contar, editadas pela “Oficina do Livro”), mas o curioso, o desarmante, é a lata moralista da “Rita” (pseudónimo), que “julga” toda a gente que lhe pagou pelos serviços. Para ela, tirando um coimbrão bonito e bem fornecido, o resto é tudo pessoal moralmente depravado e sexualmente frustrado. Ela não. Enfrentou de caras o que havia a fazer. Acabada a empreitada, regressaram marido e mulher a casa, sem problemas. “Não Contem aos nossos Filhos”. Por mim, podem estar descansados.
Mal acabei, peguei em “O Elogio da Intolerância”, de Slavoj Zizek, e comecei a ler aquele que dizem ser um dos mais interessantes e estimulantes intelectuais e filósofos da actualidade. O livro começa bem, com uma espécie de interpretação da merda, como elemento de valorização civilizacional, tendo em conta a forma com a mesma é tratada nas sanitas da Alemanha, de França e dos EUA. Depois, parece-me realmente de leitura estimulante, numa linha radical que propõe a recuperação dos movimentos sociais e das revoluções que cortem com qualquer tipo de conciliação que só favorece as forças no poder. Logo a “sociedade ocidental, machista, capitalista, dominada pelos EUA.” Uma espécie de marxismo recuperado e estripado do que provou ser perverso. Em vez dos “sans coulete” e dos “proletários de todo o mundo”, agora são os “sem parte”. Continuarei a ler, e já tenho em fila de espera “A Subjectividade por Vir” e “Bem-Vindo ao Deserto do Real”. Do mesmo. Comprei por atacado. Ainda por cima é cinéfilo. Muito.
Entretanto li, reli, releio, continuarei a ler “Outro Nome, Escassez, As Aves”, poesia de Gastão Cruz. Muito bom. E mais uma tradução magnifica de Aníbal Fernandes, “Sem Amanhã”, de Vivant Denon, uma pequenina pérola francesa (que em cinema deu “Os Amantes”, de Louis Malle). Aníbal Fernandes não traduz só magnificamente, como faz de cada seu trabalho um enquadramento histórico e literário que clarifica e torna muito mais densa a leitura. De Aníbal Fernandes tenho para comentar já há umas semanas uma tradução notável, “Zaroff (O Jogo Mais Perigoso)”, de Richard Connell, que deu uma obra-prima do cinema fantástico, e que neste volume, editado pela Assírio e Alvim, agrupa a novela do escritor e o guião do filme. E ainda uma introdução histórica impressionante de informação recolhida e condensada. A não perder. Sobretudo por quem goste de literatura e cinema fantásticos. Realmente fantásticos.
Por outro lado, tenho a meio “O Mar”, de John Banville, que alguém me recomendou (em boa hora), e comecei a devorar o último da Agustina Bessa Luís, escritora que amo. Não queria começar a ler já. Queria guardar para mais tarde. Mas abri o livro (e como são voluptuosos os livros da Agustina, começam na capa, no toque do papel, no tipo de letra, no desejo que provoca o manuseio, desejo, voragem de não mais parar) e não resisti. Assim foi. Li: “Porque até muito tarde se cozinhava a lenha e se usava a lenha para os fogões de sala. Ouvia-se o crepitar das achas secas como um ruído de bom augúrio na manhã enevoada.” Era domingo. Apeteceu-me enroscar-me no sofá, e continuar a ler. Imaginar o fogão a lenha. E ler Agustina: “A Ronda da Noite”. É o que vou continuar a fazer quando me deitar agora. “As Mãos Desaparecidas”, do meu predilecto Robert Wilson (quem não leu: “O Último Acto em Lisboa”, “A Companhia de Estranhos” ou “O Cego de Sevilha” não conhece um dos grandes romancista actuais, que ainda por cima vive em Portugal) ficará à espera das noites de Seia, durante o Festival.

(um dia destes ilustro o post com capas de livros – hoje vou ler Agustina, boa noite!)

terça-feira, outubro 17, 2006

EXPOSIÇÂO EM LISBOA: AMOR-TE (2)

Adenda sobre
a serenidade da morte:



A verdade é que esta exposição não se descola de nós. Tenho os olhos de muitos dos fotografados a acompanharem-me durante os dias que passam. Os olhos semi-abertos dos semi-vivos, os olhos fechados dos mortos. Uma questão continua a intrigar-me: a serenidade na morte. Que serenidade, se todas as fotos da morte são encenadas? O que vemos não são retratos do momento da morte, mas “encenações” da morte. Não se vislumbra um olhar vítreo, uma expressão de dor, um corpo em estertor, a agonia. O que se vê são os olhos generosamente fechados. Por familiares, por enfermeiros, por técnicos de tanatoestética. O horror da morte vai dando lugar à tal serenidade programada. Fecham-se os olhos, alinda-se a face, arruma-se o corpo e veste-se, tira-se o branco da face (a morte é branca, dizem, logo dá-se uma corzinha para alindar), e se houver dinheiro para tal e interesse da família, o
tanatoesteticista não se poupa a esforços. Verniz nas unhas, rímel nas pestanas, uma tonalidade nas pálpebras, o cabelo bem arranjado, a insinuação de um sorriso. Esta imagem da morte que vemos, nos velórios e nas fotografias (não há uma foto de morto de olhos abertos na exposição), é uma imagem fabricada, para nos dar precisamente a noção de serenidade, para esconjurar o medo, para afastar o mais possível o confronto dos vivos com a realidade última da morte. Não há serenidade na morte. Pintam-nos essa serenidade no rosto, depois de mortos. Fotografam-nos essa placidez com a ternura do olhar do fotógrafo, que também ele teme enfrentar a morte. A morte pode ser uma libertação, mas nunca será serena. Quem “se apaga” “como um passarinho”, durante o sono, ou de uma outra forma qualquer, apaga-se serenamente? Eis uma questão a que ninguém conseguirá responder. Eis uma dúvida que ninguém gostaria de poder resolver.

Nota: no último domingo (15.10.2006), duas revistas de jornais diários, trazem artigos que se cruzam com a matéria aqui tratada. No “Noticias Magazine”, “Retratos, A Vida daqueles que ninguém vê.” (onde se fala por exemplo, de um tanatoesteticista), e na “Pública” uma entrevista Tsering Paldron (no B.I., Emília Marques Rosa), monja budista, que fundou a associação Amara, de apoio a doentes terminais, entidade que está na base desta exposição em Portugal. Leitura interessante.
o texto anterior começava aqui


Heiner Schmitz
52 anos
Nascido a 26 de Novembro de 1951
Primeira fotografia efectuada a 19 de Novembro de 2003
Falecido a 14 de Dezembro de 2003
Hamburgo Leuchtfeuer Hospiz

Heiner Schmitz viu a mancha na tomografia do seu cérebro. Compreendeu imediatamente que não lhe restava muito mais tempo. Schmitz é um comunicador nato, de expressão fácil e raciocínio imediato,não sem profundidade. Trabalha em publicidade. Nessa área, em circunstâncias normais, está sempre toda a gente bem disposta. Os amigos de Heiner não querem que ele esteja triste, querem distraí-lo. No hospital põem-se a ver futebol com ele, como sempre. Cerveja, cigarros, uma festa no quarto. As miúdas da agência trazem-lhe flores. Muitos aparecem acompanhados, para evitarem ficar sozinhos com ele. Sobre o que é que se conversa com um condenado à morte? Há quem lhe deseje as melhoras ao despedir-se. “Vê lá se te pões fino, pá!”. “Ninguém me pergunta como é que me sinto”, diz Heiner Schmitz. “Estão todos borrados de medo. Aquelas conversas embaraçosas sobre isto e aquilo. Eh, ainda não toparam? Eu vou morrer! É esse o meu único pensamento em cada minuto que me encontro sozinho”.
Foto e texto da exposição - um caso

domingo, outubro 15, 2006

MÚSICA: Nuda



MUSICA NUDA



Não há ninguém mais de amores à primeira vista, de paixões assolapadas do que eu. “Coup de foudre”, autêntico. Ouvi duas canções e fiquei conquistado. Amanhã vou percorrer as discotecas. Já vi na Amazon que o DVD não há de momento. Esgotado no editor. Há dois CDs. Vou tentar em Lisboa, se não mando vir. Expresso. Chamam-se Petra Magoni e Ferruccio Spinetti formam “Musica Nuda”. Descobri num blog de bom gosto. Lá encontram alguma informação e duas canções “apaixonantes”, e promessas de mais. De resto podem ir ler a entrevista anunciada e saber tudo o mais na net. Mas, sobretudo, deliciem-se com a mistura de voz e contrabaixo. Um espanto. Discreto.

EXPOSIÇÃO EM LISBOA: AMOR-TE (1)



AMOR-TE










“Amor-te” é uma exposição inquietante, sobretudo numa sociedade que não sabe confrontar-se com a morte. Dizemos nós da nossa, cristã ocidental. Mas quem sabe confrontar-se com a morte? Haverá alguém, por mais preparado que pense estar, que no momento decisivo não vacile, não se interrogue, não tenha medo? No momento decisivo, ou algum tempo antes, ou muito antes do momento decisivo, apenas quando as inquietações se acentuam, com o avolumar da idade ou o andar da doença? Quem ficará impune perante a presença do velho esqueleto encapuzado que traz na mão a foice?
Pois bem um fotógrafo alemão, Walter Schels, e a sua mulher, a jornalista Beate Lakotta, do “Der Spiegel”, têm 30 anos de diferença de idade. E o fotógrafo pensou: “o que farás quando eu morrer? Como será quando morreres?” Como não podiam saber por experiência própria (ninguém voltou ainda para contar como era, e não consta que tão cedo tal aconteça), foram procurar doentes terminais e seguiram os seus percursos por hospitais e tratamentos, até à morte. Os doentes sabiam que iam morrer em breve, e tudo leva a crer que autorizaram esta invasão de privacidade. Estávamos no ano de 2003. Depois disso a exposição foi inaugurada em Dresden, e passou por várias cidades europeias, nomeadamente Berlim, Basileia e Roma, onde foi vista por mais de 200 mil pessoas.
O que vemos são 21 imagens duplas de um mesmo rosto: primeiro, durante a doença, com a vida ainda presente, apesar do sopro estar já desgastado, a dor e o sofrimento se terem instalado, e depois, o rosto da morte. A conclusão imediata a extrair é que antes se nota a inquietação e o sofrimento, depois a uma serena paz. Não me parece. O que se vê é primeiro a presença e depois a ausência, e quando não há presença da vida não há nada neste corpo que espera regressar à terra donde veio. Logo qualquer tipo de aparente serenidade quando não há capacidade de decisão, não há escolha, é uma serenidade de pedra. Não estão em causa questões de fé. A fé passa ao lado das fotos, pressente-se nalguns dos comentários que a jornalista Lakotta acrescenta, testemunhando cada “estória” pessoal (“Uns desejam a morte como fim do sofrimento. Outros sentem-se revoltados com o que lhes aconteceu”), mas não está nunca presente, quer se trate de um velho que espera a morte por cancro, ou de uma criança ou de um bebé precocemente levados pela doença. A única excepção das 21 fotos duplas é uma trilogia dramática: uma criança ainda viva, já morta, e o retrato da mãe que a seguiu alguns dias depois da morte da filha. O drama em estado puro, o “voeyrismo” na morte, sem que o termo aqui acuse qualquer valorização moralista. Toda a arte do espectáculo é voeyrista quer se queira quer não. Fotógrafos e cineastas nada mais fazem do que olhar e tirar prazer desse olhar, mesmo quando é horror o que se vêem. O prazer advém então da possibilidade de transmitir o horror, e, na melhor das hipóteses, de através da imagem captada se tentar anular, ou atenuar, o horror futuro. Neste caso, a fotografia alerta para o convívio com a morte, mas em lugar de preparar para a morte (bom princípio, mas de resultados duvidosos), deve preparar para enfrentar, o melhor possível, os últimos dias de vida. Com ou sem doença. Por isso esta exposição que marca definitivamente quem a vê, se encontra incluída numa semana relacionada com “os cuidados paliativos.” A conjugação das palavras Amor e Morte não me parece ir num sentido necrófilo, mas no sentido de, perante a morte, se amar cada vez mais a vida.

“Amor-te” está aberta de 3 a 28 de Outubro, todos os dias, também domingos, das 10 às 18 horas, no Museu da Água, Mãe d'Água das Amoreiras, Lisboa.
Quem quiser pode e deve visitar o site da exposição em:
http://www.exposicaoamor-te.blogspot.com/
se quiser, este texto continua aqui

sábado, outubro 14, 2006

CINE ECO 2006: PROGRAMAÇÃO DEFINITIVA



CINE ECO 2006

CASA DA CULTURA
CINE TEATRO DE SEIA
GRANDE AUDITÓRIO
PROGRAMAÇÃO
DEFINITIVA
veja aqui

domingo, outubro 08, 2006

CINEMA: Alguns Dias em Setembro

“ALGUNS DIAS EM SETEMBRO”

Santiago Amigorena nasceu argentino, em Buenos Aires, a 15 de Fevereiro de 1962. Mas passou grande parte da sua vida em Paris. Antes de assinar “Quelques Jours en Septembre” como realizador, estreia na direcção, tem uma carreira vasta como argumentista (“Le Péril Jeune”, “Peut-être”, “Tokyo Eyes”, “Les Gens Normaux n'ont rien d'Exceptionnel”, “Le fils du requin” ou “Post Coïtum, Animal Triste”, entre muitos outros), produtor, dialoguista, até actor. Também como escritor (“Une Enfance Laconique”, “Une Jeunesse Aphone”, “Une Adolescence Taciturne”, “Le Premier Amour”: os títulos dizem um pouco do que serão as obras). Paulo Branco deu-lhe a oportunidade e o resultado aí está: “Alguns Dias em Setembro”, um filme que procura caminhar pelos trilhos do policial, do “thriller”, “uma tragédia de espionagem” (disse o próprio).
“Alguns Dias em Setembro” é um projecto curioso, mas apenas isso. Falhado em vários planos, é, todavia, um falhanço simpático, com algumas ideias curiosas e outras que nem por isso. A história não é muito interessante, apesar de jogar com os atentados de 11 de Setembro de 2001 como pano de fundo. Mas esse pano de fundo funciona mais como chamariz do que como referência política ou policial intencional. Oportunismo de bilheteira.
Tudo começa a 1 de Setembro, quando Elliot, um agente secreto norte-americano desaparece, sabendo demasiado sobre algo que vai acontecer nos EUA dentro de muito em breve. Desaparecido, consegue ainda assim informar um grupo financeiro para retirar todo o capital dos bancos norte-americanos, para desta forma fazerem fortuna imediata (e ele por tabela), e, por outro lado, reunir a filha Orlando, que já não vê há anos, um enteado, David, e uma ex-camarada de armas e amiga, Irene, primeiro e Paris, depois em Veneza, com a finalidade de esperarem por ele, para as partilhas. Mas nem tudo são rosas na vida de um gente secreto e atrás de Elliot anda o seu antigo colaborador William Pound, transformado em assassino poeta que vai comentando diariamente com o seu psiquiatra o estado da sua vida psicológica. Afinal ele “anda a matar o pai”, aquilo que o psiquiatra lhe tinha recomendado. Mas em vez de o fazer de uma forma simbólica, tenta fazê-lo fisicamente, de uma maneira absolutamente radical.
E pronto, temos as “deixas”, os cenários míticos, actores de renome, prestígio e competência (Juliette Binoche, John Turturro, Sara Forestier, Nick Nolte, entre outros), insinuações anti-americanas (os atentados foram preparados com conhecimento de alguns americanos, que certamente os incentivaram por motivos económicos e políticos) e pouco mais. Santiago Amigorena pretendeu um filme pouco espectacular, onde a acção exterior fosse vista do interior. Conseguiu-o por vezes, andou à deriva noutros casos. No final assinou uma obra que se vê sem enfado, mas se esquece sem tristeza. John Torturo assina a única personagem que apetece recordar. O que é grave surgindo Juliette Binoche no elenco.

ALGUNS DIAS EM SETEMBRO (Quelques Jours en Septembre), de Santiago Amigorena (França, Itália, Portugal, 2006), com Juliette Binoche, John Turturro, Sara Forestier, Nick Nolte, etc. 112 minutos; M/12 anos; Atalanta.

O LADRÃO DE IMAGENS: Hooper

Edward Hopper

"No Whitney Museum of American Art, New York: ter o arrepio de contemplar o original", diz Tomás Vasques, e eu confirmo. Tomás Vasques tem a sorte de lá estar agora, eu vi-o há uns aninhos já. Mas o arrepio voltou, agora que o revi. E lembrei-me de algo, muito curioso: devo ter visto esse quadro em 1980 e poucos (andava eu com a "Manhã Submersa" às costas pelo mundo). Muitos anos depois (inícios de 2000), imaginei uma encenação de uma peça, de que desenhei cenário e escolhi cores, sem me lembrar obviamente de Hooper. Ao rever o quadro agora compreendo como somos todos feitos de tanta coisa que ficou para trás, mas bem dentro de nós. Imagens, sons, cores, textos, sensações que nos povoam. Dizem que a cultura é o fica depois de esquecermos tudo... Será? Obrigado TV pela recordação.

sexta-feira, outubro 06, 2006

TEATRO EM LISBOA - Música no Coração

“MÚSICA NO CORAÇÃO”

Dia 5 de Outubro (“Viva a República!”), 21,30 horas, Rua das Portas de Santo Antão, Lisboa. Ante-estreia de “Música no Coração”, no Politeama, estreia de “Cats”, no fronteiriço Coliseu. A nossa pequena Broadway a fervilhar de público. Milhares a esgotarem salas de teatro. Crise de teatro, onde?
No Politeama, um belo catálogo, com um texto meu, que transcrevo:


Meu Caro Filipe La Féria,
É mais uma vez com imenso prazer que respondo a um seu convite: escrever um texto para o programa de “Música no Coração”, tendo por base o filme de Robert Wise (1965). Mas desta vez o convite é embaraçoso. Há alguns filmes sobre os quais tenho uma recordação ambígua. Este é um deles. Ao longo da vida fui gostando e desgostando. Gostando de Robert Wise (sempre!), gostando e desgostando de tudo o resto, porque a vida é feita de bons e maus humores.
Quando somos mais novos, mais radicais, menos dados à sensatez, “The Sound of Music” deve ser pasto de toda a nossa verrinosa maledicência. Que dizer desta empastelada aventura sentimental da família Trapp? Pois nada melhor que arrear-lhe em cima. Mesmo um cliente habitual e um fanático do “musical” (no teatro ou no cinema) como eu, nunca viu com bons olhos esta lamechice da freira cantante que se apaixona pelo barão viúvo com sete filhos e foge dos nazis a cantar num festival de Salzburg. Mas a verdade é que vi várias vezes o filme, ou excertos do filme (sobretudo nas vésperas de Natal, num qualquer canal de TV). É que “Música no Coração” tem muito que se lhe diga, tanto a peça, como sobretudo o filme.
“The Trapp Family Singers” foi a biografia escrita por Maria Augusta Trapp, publicada em 1947, quando a família já tinha terminado a sua carreira como cantores, contando as mirabolantes peripécias de uma preceptora de criancinhas que interrompe o seu estágio para freira para descobrir a verdadeira “vida” na casa dos Trapp, com todo o seu caudal de promessas de felicidade e ameaças de tragédia. Com base nesta autobiografia, surgiu na RFA, em 1956, um filme, “Die Trapp-Familie” (ou “The Trapp Family”), assinado por Lee Kresel e Wolfgang Liebeneiner, com argumento de George Hurdalek e Herbert Reinecker, que parece estar na origem do interesse dos produtores norte-americanos. Entre os intérpretes, contava-se a memorável Ruth Leuwerik (no papel de Maria), ao lado de Hans Holt (Barão von Trapp), Maria Holst, Josef Meinrad, Friedrich Domin, Hilde von Stolz, Agnes Windeck, Gretl Theimer, etc. Na estreia, a baronesa Von Trapp, sobrevivente ainda da gesta coral da família, teve uma deixa memorável: “Nada é verdadeiro, mas é tudo maravilhoso!” A música era de Franz Grothe, e a premissa do filme enquadrava-se bem no espírito da reconstrução alemão, “para todos os problemas, há uma solução”.
O realizador Wolfgang Liebeneiner era um homem experimentado neste tipo de obras, e teve um sucesso inequívoco. Há no argumento desta obra um final que deixa supor que a família Trapp fugiu da Alemanha nazi directamente para os EUA, o que não aconteceu na realidade, pois ficaram na Europa e só em 1939 iniciaram a tournée pelos Estados Unidos. Essa estadia daria origem a uma continuação, “Die Trapp-Familie in Amerika” (“The Trapp Family in America”) (1958), desta feita dirigida unicamente por Wolfgang Liebeneiner. Ruth Leuwerik regressaria no papel da Baronesa von Trapp, e Hans Holt, no de Barão von Trapp.
Foram estes filmes, e a biografia escrita, que inspiraram Oscar Hammerstein II a escrever as líricas e Richard Rodgers a compor a música para um guião de Hopward Lindsay e Russell Crouse, que subiu a cena no Lunt-Fontanne Theatre (Nova Iorque), em 16 de Novembro de 1959, para iniciar uma carreira épica na história do musical norte-americano. Mary Martin e Theodore Bikel eram os protagonistas inspirados que “conquistaram os corações” de todos os espectadores na noite da estreia, com excepções de alguns críticos que colocaram ressalvas a este espectáculo. Mas neste caso os críticos escreveram e a caravana passou incólume. O sucesso estava na rua. Nada o detinha.

Versões teatrais anteriores, em Londres e Nova Iorque: veja e compare. La Féria dá banhada: a sua versão é muito melhor.


“Música no Coração” transformou-se daí em diante, seguramente, num dos mais célebres e rentáveis espectáculos de toda a história do teatro e do cinema musicais. O seu êxito triunfal em (quase) todas as temporadas teatrais e o seu apoteótico sucesso nas salas de cinema, aquando da estreia do filme assinado por Robert Wise, que esteve em Lisboa (quem não recorda?), quase dois anos consecutivos no Tivoli, com sessões esgotadas e espectadores que repetiam a sua visão vezes sem conta, não termina de surpreender tudo e todos. Ninguém se furta agora, por exemplo, ao fascínio de um novo lançamento em DVD (com dezenas e dezenas de extras, a explicar como foi o que foi), e ninguém pode negar a genialidade de Robert Wise a conduzir este filme, muito embora alguns possam não suportar o tom algo lamechas e o peso de um argumento que, não sendo convencional, acaba por não se furtar a todos os rodriguinhos do melodrama musical.

Acontece que gosto de melodramas (ah, o Douglas Sirk!) e adoro musicais. Logo, por que não gostar deste “dois em um” que, para mais tem uma soberba partitura musical? Revisto agora o filme, o que sobressai é realmente a portentosa realização de um mestre, Roberto Wise. A sua relação com os cenários, a forma como enquadra, como movimenta a câmara, como dirige os actores, como se serve da sumptuosa paisagem, como estabelece a relação entre as personagens no interior de um mesmo plano (como realiza a “mise-en-scène”, em suma) é realmente brilhante. Depois a história por vezes arrasta-se nalguns convencionalismos escusados. Mas a verdade é que o filme sobrevive, e sobrevive bem.
Fui remexer em papéis antigos e descobri uma nota minha no DN sobre uma reposição do filme de Julho de 1977. Não se esqueçam da data e atentem no que escrevi: “Falando do filme, o melhor será passar por cima das aventuras e desventuras da família Trapp (que todos conhecem), para reconhecer a maestria extrema deste produto de uma cinematografia virada essencialmente para o “divertimento para toda a família.” Veiculando uma filosofia da vida de base “pequeno-burguesa”, jogando com os sentimentos e as emoções a seu belo prazer, “The Sound of Music” é, por outro lado, uma verdadeira lição de técnica e de “métier”. Por alguma razão Mao Tse Tung, quando quis que os chineses aprendessem cinema, lhes comprou, entre outras (poucas), uma cópia deste “manual”.

Ora bem: com uma ou outra alteração terminológica, mantenho o que então disse, acrescentando que, trinta anos depois, os chineses demonstraram ter aprendido, e muito bem, a fazer cinema. Robert Wise foi um dos grandes cineastas de Hollywood, um homem que começou a carreira ao lado de Orson Welles (colaborador essencial em “Citizen Kane”) e construiu depois uma filmografia invejável. Eu sou um fã incondicional. De tal forma, que há uns anos, num festival de Óbidos, ele foi o presidente de um Júri de que eu também fazia parte. Infelizmente adoeci e não pude estar presente nos trabalhos do festival, mas fui a Óbidos conhecê-lo, só para ter o prazer de o olhar nos olhos. Afinal ele assinou uma dezena de obras-primas, desde “O Túmulo Vazio” (1945), até “West Side Story” (1961), passando por “Nascido para Matar”, “Nobreza de Campeão”, “O Dia em que a Terra Parou”, “Marcado pelo Ódio”, “Quero Viver”, “Homens no Escuro”, não contando com os ameaços.
Uma informação final: outro filme surgiu na continuação de “Música no Coração”. Foi “Celebrate the Sound of Music”, de 2005, uma realização de John L. Spencer, para televisão, e, tal como o próprio título sugere, trata-se de uma homenagem ao filme, com participação de cantores e personalidades que evocam a obra. Graham Norton era o apresentador, e apareciam vozes de Big Brovaz, Clare Buckfield, Fearne Cotton, Rosemarie Ford, Lesley Garrett, Carrie Grant, Jill Halfpenny, Gloria Hunniford, Bonnie Langford, Jon Lee, Robert Lindsay, Richard McCourt, Linda Robson, Denise Van Outen, entre outras.
Agora anuncia-se a versão teatral portuguesa de “Música no Coração”, com a sua assinatura, Filipe La Féria, e com um elenco prestigiado, à frente do qual Lúcia Moniz e Anabela alternam no papel de “A Noviça Rebelde” (título do filme no Brasil). Com a partitura de Oscar Hammerstein II e Richard Rodgers, que contém só “hits” inesquecíveis, o seu bom gosto, o seu sentido do espectáculo, o seu ritmo e a sua direcção de actores estou certo que desta minha embaraçosa ambiguidade vão ressaltar as virtudes e atenuarem-se os lamentos.
Lá estarei na estreia, a torcer como sempre. Até lá, um abraço de um cúmplice dos musicais,
Lauro António (14 de Agosto de 2006).

La Feria em ensaios, em Agosto de 2006.

E assim foi, Lá estive na estreia, a torcer como sempre. Mas sem necessidade de torcer por amizade. Esta montagem portuguesa de “Música no Coração” é verdadeiramente surpreendente e um enorme passo em frente na história do musical em Portugal, mas mais ainda, na história do teatro em Portugal.
A encenação e o trabalho da equipa que La Feria dirigiu conseguiu, não direi subverter (porque a fidelidade ao original é total), mas nuancear o tom da obra, conferindo-lhe uma outra força e densidade, tornando-a mais adulta, mais madura, menos dependente desses excessos piegas que dela me afastavam por vezes. Tudo o que o filme de Robert Wise tinha de moralista, pequeno burguês, por vezes chato, foi ultrapassado pela notável encenação de Filipe La Féria. Não há um ponto morto, atenuou-se o moralismo serôdio, não há o gosto duvidoso do “pequeno-burguês” “pimbalheiro” que aqui e ali aflorava no filme admiravelmente cantado por Julie Andrews. Como por milagre, esta é uma versão expurgada de quase todos os defeitos das versões teatrais e cinematográficas que até hoje tinha visto descrevendo a odisseia da Família Von Trapp.

A história é, sem tirar nem por, a já conhecida, não adianta recontá-la. Mas La Féria teve o condão de tornar mais densas as situações, de criar uma atmosfera pesada e prenunciadora de tempestade, logo desde início da peça. Todas as cenas que se passam no convento, por exemplo, não são meras convenções pitorescas, mas momentos carregados de um clima forte, sustentados em cantos graves, entrecortados por irónicas referências. O drama que se vai apoderando da família Trapp é também ele bem desenvolvido, até culminar na fuga de Áustria, perante a ameaça nazi. Há sequências de uma imaginação de encenação notável, o piquenique na montanha com as notas de música a serem ensinadas por Maria, a representação das “marionetas” durante uma festa em casa dos Von Trapp, a apresentação da família de cantores, durante o festival de Salszburgo, a fuga final…

La Féria terá construído o seu melhor espectáculo até à data, e o triunfo apoteótico que marcou o final da representação, na noite do dia 5, foi apenas merecido. Quando digo melhor espectáculo, creio saber do que falo, eu que tenho acompanhado toda a sua carreira. Se “Amália” era um triunfo, mas tinha uma encenação ligeira e vivia muito da própria Amália, da sua mítica “presença” e da empatia do público para com a Diva, o fado e a “canção nacional”, se “My Fair Lady” era uma excelente encenação (mas algo próxima de outras vistas em palcos ingleses e americanos), esta encenação de “Música no Coração” pouco deve a versões anteriores. È nitidamente uma re-invenção local, obra de um inspirado encenador, em momento de acerto global, criando uma (quase) obra perfeita, tecnicamente irrepreensível, esteticamente de um bom gosto inatacável, humanamente de uma contextura indesmentível.
Depois La Féria não se poupou a nada para nos dar o grande espectáculo idealizado. Não se nota falta de orçamento, os valores de produção surgem a cada novo quadro, mas existe sempre o bom senso de não explorar o investimento, de não atirar à cara dos espectadores o capital empatado. Sentem-se os euros que a encenação custou, mas nunca levamos com eles pela cara dentro.

Há dias, quando, no jornal “Público”, perguntavam a La Féria o que sentia quando o comparavam a Andrew Lloyd Webber, respondia este com graça que um andava de helicóptero particular, entre Londres e Nova Iorque, e ele de táxi entre Santos e o Politeama. Depois desta encenação, e sem que nenhum tenha para dar ao outro lições, a diferença é mesmo essa. Ver “Música no Coração” em Lisboa, nesta encenação de La Féria, com a equipa que reuniu, não fica nada atrás de uma qualquer encenação na Broadway ou no West End. Muitos londrinos e nova-iorquinos apreciadores de musicais poderiam, e deveriam, vir a Lisboa ver esta versão de “Sound of Music” para assistirem a um óptimo espectáculo, um dos melhores espectáculos de teatro (não falo só de musicais!) que tive o prazer de ver em palcos portugueses. La Féria está de parabéns, ele e toda a sua equipa, dos cenários ao guarda roupa, das maquinarias do sobe e desce até às luzes, da orquestra aos cantores, aos actores, aos grupos de crianças que se revezam nos diferentes espectáculos. Na noite da primeira ante-estreia vi Lúcia Moniz em grande, inundando o palco com a voz, a alegria e a simpatia (hei-de voltar para ver Anabela, que manterá o espectáculo ao mesmo nível, estou certo disso), vi Carlos Quintas impor-se no difícil Von Trapp, vi Joel Branco, Vera Mónica, Helena Rocha, Helena Vieira, Helena Afonso, Lia Altavila em excelente forma, vi um conjunto de coadjuvantes bem integrados, vi um elenco quase sem mácula. Vi um grande espectáculo. Fiquei feliz por ser português. Na Rua das Portas de Santo Antão. No dia 5 de Outubro.
(Nota pessoal: também fiquei feliz por ver o Frederico como assistente de encenação e autor de tudo quanto sai em vídeo sobre o espectáculo. Parabéns também para ele. No meio disto tudo, és um gajo com sorte, mas merece-la! Um beijo do pai babado).

Andrew Lloyd Webber anuncia o mesmo espectáculo
para Londres, em Novembro:

segunda-feira, outubro 02, 2006

JEAN-CLAUDE CARRIÈRE:


TECNOLOGIA VS CRIATIVIDADE

A Lisa França , sempre atenta, enviou-me um recorte da “Folha de São Paulo”. Entrevista de Jean-Claude Carrière, um dos mais brilhantes escritores e argumentistas franceses (trabalhou com Buñuel e Peter Brooks), sobre vários temas. Resposta essencial para mim, que sempre defendi isto, “que técnico não pode ser robot”, “que tecnologia por si só não inventa, não cria”. Donde a importância de educar para a arte, para o cinema, sensibilizar, dar noções de história do cinema, de estética, de ética. Leia-se:

FOLHA - A tecnologia digital não facilitou a produção de filmes?
CARRIÈRE - É exactamente o contrário. Quanto mais a técnica é fácil, mais a ideia é difícil. Nunca foi tão difícil fazer uma imagem inesquecível como a da lâmina em "Um Cão Andaluz" [1928, de Luis Buñuel], uma das imagens fortes do século 20. É muito difícil fazer apenas uma com essa qualidade. A aparente facilidade técnica é uma mentira, um erro. A técnica sempre teve a pretensão de poder dispensar a ideia, o pensamento. E o resultado lamentável são esses filmes feitos em vídeo, com câmaras no ombro, digitais, sem nenhuma atenção dispensada ao roteiro e à direcção propriamente dita. Isso mostra como é perigoso acharmos que os aparelhos farão filmes nos substituindo. Dirigi uma escola de cinema por dez anos [a FEMIS, Escola Nacional Superior de Ofícios da Imagem e do Som] e sei do que estou falando.

Está dito.
Sobre o autor descobri (e gostei, logo partilho):
JEAN-CLAUDE CARRIÈRE A DIT...
[20 CITATIONS TROUVÉES ]


Dire qu'un paradoxe contient toujours une vérité
n'est même plus un paradoxe.
[Jean-Claude Carrière] Extrait de Détails de ce monde.

Pour certains, la culture est une boucle d'oreille.
Pour d'autres, c'est une oreille.
[Jean-Claude Carrière] Extrait de Détails de ce monde

Un enfant disait, pour parler du temps d'avant sa naissance:
"Quand j'étais encore mort."
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

L'auteur est condamné au succès ou à un deuxième métier.
[Jean-Claude Carrière]

Le recit est un chemin qu'il faut suivre pour se perdre.
[Jean-Claude Carrière]

L'autarcie culturelle et raciale est une marche à la mort.
Elle est tout aussi irréalisable que son contraire,
une culture mondiale uniforme.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait d’ Entretiens sur la fin des temps

Le temps, c'est un peu comme le vent.
Le vent, on ne le voit pas:
on voit les branches qu'il remue,
la poussière qu'il soulève.
Mais le vent lui-même, personne ne l'a vu.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait d’ Entretiens sur la fin des temps

Le rêve est la vraie victoire sur le temps.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait d’ Entretiens sur la fin des temps

Une société sans pensée utopique est inconcevable.
Utopie au sens de désir d'un mieux.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait d’ Entretiens sur la fin des temps

Nous n'avons en aucune manière le monopole de la pensée.
Il existe, un peu partout en Occident,
un racisme de l'intellect dont nous devons nous méfier.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait d’ Entretiens sur la fin des temps.

On a connu des hommes qui ont fait de hautes études,
qui ont eu de très belles situations,
qui ont gagné beaucoup d'argent
et qui ont tout de même réussi leur vie.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

L'avenir est une tradition. Combien de temps se maintiendra-t-elle ?
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

Il faut savoir joindre l'agréable à l'agréable et se contenter de beaucoup.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

Un foetus est le scénario d'un homme.
Qui en est le metteur en scène ?
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

Un humaniste, c'est quelqu'un qui n'aime pas vraiment les animaux.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

La terreur est humaine.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

Les grands esprits se rencontrent, mais les petits aussi.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

Le hasard fait bien les choses. Quand il les fait.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

C'est une entreprise bien difficile que de faire rire les honnêtes gens.
Et les autres donc !
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

On peut commencer n'importe où, même par le commencement.
[Jean-Claude Carrière]
Extrait de Détails de ce monde

CINEMA - Voltar



"VOLVER"


Tenho que confessar que sou um "almodovista" convicto. Fartam-se alguns de comentar que o cineasta se esgotou, se auto plagia, faz o mesmo filme, não tem ideias, etc, e tal o costume. Pedro Almodôvar para mim é indiscutivelmente um dos grandes, dos maiores cineastas europeus contemporâneos, um daqueles raros que se entrarmos numa sala de projecção com um filme a correr, e sem saber ao que vamos, acabamos logo por saber que vamos por Almodôvar, tão forte é a sua imagem, a sua voz, as suas obsessões, o seu universo, a sua estética.

“Volver” é voltar a Almodôvar, o de início de carreira ("Que Fiz Eu Para Merecer Isto?"), o de meio de carreira (“Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”), o da carreira mais recente (“Tudo sobre a Minha Mãe”). Voltar simplesmente a Almodôvar. Não o das obras-primas (“Volver” anda longe de ser uma obra-prima, anuncia-se mais como um exercício de estilo, um intervalo de entretenimento brilhante, mas não mais o que isso). Mas quem anda só à procura de obras-primas? Acontece que irmãs, tias, mães, conhecidas e outras tias também são gente, e Almodôvar prova-o bem nesta comédia melodramática e kitsch como só ele seria capaz de dirigir de forma a tornar plausível todo aquele universo de um neo-realismo pós-moderno, garrido e estridente, repenicado de beijos, beijinhos e beijões, com mulheres que já ultrapassaram o ataque de nervos e vão à vida, como heroínas de um dia a dia que Almodôvar sabe pintar como poucos.

À saída dizia eu: “A Penélope Cruz está magnifica!”, e respondiam-me “E a Cármen Maura, extraordinária, dezassete anos depois!”, “E a miúda (Yohana Cobo),, que trabalho fabuloso!”, “é verdade, mas que dizer daquela actriz careca, a…” “A vizinha da aldeia?, a Agustina? É a Blanca Portillo. Soberba.” “Sim, mas não podemos esquecer Sole, a irmã, Lola Dueñas, nem a velhota, a tia que morre, espantosa a Chus Lampreave.” Assim é. Neste universo de mulheres, onde quase não há homens, e os que há e são hetero e gostam de mulheres, ou são pedófilos, ou passam a entregar as chaves do restaurante e vão embora, neste universo de mulheres, dizia, Pedro Almodôvar sente-se à vontade, passeia-se com uma curiosidade apaixonada, aproxima-se de mansinho, e dá-nos retratos admiráveis de mulheres de sete ofícios que têm de se desengomar sozinhas, que vão à luta, que ultrapassam mesmo as regras mais elementares de conduta civilizada (há assassinatos para todos os gostos, e sobretudo crimes perfeitos, perpetrados na mais completa ingenuidade), mas que Almodôvar desculpabiliza (de certa forma atirando todo o mal do mundo para cima dos homens “machistas” que não controlam o desejo quando vêem uma fêmea). Mas que importância tem isso? Os “autores” (e Almodôvar é um verdadeiro “autor” em toda a acepção da palavra!) têm destas coisas, dizem-se e redizem-se, fazem sempre o mesmo filme, andam pelos mesmo cenários, com as mesmas personagens, pensam da mesma maneira, olham e filmam com o mesmo olhar, e é isso mesmo que procuramos, esse universo único, impossível de copiar a não ser pelo próprio.
Aqui há uma mulher casada, Raimunda (Penélope Cruz) que tem em casa um marido operário, acabado de ser despedido, que olha com apetite para as pernas da suposta filha adolescente (Yohana Cobo), enquanto emborca cerveja e vê jogos de futebol na televisão. Há a irmã de Raimunda, Sole (Lola Dueñas), cabeleireira em casa, depois do marido a ter deixado. Raimunda, Sole, e Paula viajam e passam por casa da tia (Chus Lampreave) que vive na aldeia distante de Madrid. A tia habita uma casa enorme, onde está aparentemente só, mas não, a seu lado está o “fantasma” da irmã (Carmen Maura), mãe de Raimunda e Sole, e que aparentemente terá morrido num incêndio, juntamente com o marido. Agarrada a esse marido que era tudo quanto ela mais amava. Morreu feliz, suspira Raimunda. Terá sido assim? A verdade é que o pai de Raimunda e Sole era um mulherengo, e andava enrolado com a mãe de Agustina (Blanca Portillo), que desapareceu desde o dia do incêndio que vitimou o infeliz casal. Pois… “fantasmas” e “fantasmas de fantasmas” que a memória engana enviando para um terreno desconhecido, à beira de um rio, onde se gosta de passar o tempo e fazer um piquenique.
Detestando a televisão (que desanca de filme para filme com uma acutilância critica notável), Almodôvar cita Visconti e “Belíssima” (com a belíssima Anna Magnani, que nesse filme “vende” a filha ao cinema, pelo preço da “glória de um dia de fama”, tal como hoje se faz na televisão). Oscilando entre o subúrbio de Madrid e o mundo rural, com os majestosos moinhos de vento a pautar as viagens entre a cidade e as serras, equilibrando-se entre o pender fantasmagórico das crendices rurais e o realismo da cidade, onde o aparecimento de equipas de filmagem também cria os seus “milagres”, “Volver” é um filme magnifico, brilhante, contagiante. Um daqueles filmes que não sei, nem me importa saber, se é obra-prima ou não. Sai-se do cinema com vontade de voltar a entrar. Melodrama sem lágrimas (nos espectadores, no filme são um riacho), comédia sem gargalhadas, “Volver” nada tem de fácil. É uma lição magistral de cinema e de representação. Que dizer de Penélope Cruz? Meu Deus, onde chegaste pela mão de Almodôvar! Também aqui o cineasta se mostra um dos mais seguros e comovedores directores de actrizes. Saídos há poucas horas da sala de cinema, que saudades já daquelas personagens!



VOLTAR (Volver), de Pedro Almodôvar (Espanha, 2006); com Penélope Cruz (Raimunda), Carmen Maura (avó Irene), Lola Dueñas (Sole), Blanca Portillo (Agustina), Yohana Cobo (Paula), Chus Lampreave (Tía Paula), etc. 121 min; M/ 12 anos.

domingo, outubro 01, 2006

CINEMA: World Trade Center


WORLD TRADE CENTER
“World Trade Center”, de Oliver Stone, o que é? Um homenagem aos desaparecidos do 11 de Setembro de 2001, mas sobretudo aos “aparecidos”, aqueles que, depois de terem sido dados como “desaparecidos”, renasceram das cinzas e regressaram à vida. Foram vinte segundo diz-nos o filme, num universo de quase 3.000 mortos. O filme foca sobretudo os casos dos 18º e 19º que voltaram de sob os escombros, dois polícias de Nova Iorque que pertenciam a um dos grupos que primeiro entraram nas torres gémeas, depois destas terem sido atingidas, mas antes de terem derrocado. John McLoughlin (Nicolas Cage)e Will Jimeno (Michael Pena), do Departamento da Polícia Portuária, que estão vivos e contaram ao cineasta a sua história verídica: como acordaram com a cidade (belíssimas sequências do alvorecer de NY), como se dirigiram à esquadra a que pertenciam, como foram colocados na rua em serviço de rotina, como ouviram à distância algo de muito estranho, como voltaram a ser chamados à esquadra e enviados para as torres gémeas, onde dois aviões comerciais acabavam de embater, como procuraram ajudar as pessoas a sair do edifício, como notaram que algo de mais grave ainda se iria passar, como correram para o fosso dos elevadores, onde se refugiaram da hecatombe que lhes caiu do céu. Como de um momento para o outro, de um grupo de resgate sobreviviam apenas três, logo depois dois, entaipados por montanhas de pedras, chamuscados por ventos de fogo que atravessavam o ar, com o peito e as pernas desfeitos por blocos de cimentos, e como não deviam adormecer, estar acordados, sobreviver, sobreviver, sobreviver sempre, até que o milagre acontecesse. Aconteceu. Foram descobertos e retirados com vida. Este o relato da coragem de dois homens, de um grupo de pessoas, de uma cidade, de um país, da Humanidade: acreditar sempre que, mesmo nos piores momentos, não devemos desistir, não nos devemos entregar, não podemos adormecer.
OK. Isto é uma das metáforas do filme. A outra: cá fora, em casa, na rua, nos hospitais, nas esquadras de polícia, familiares e amigos torcem bravamente, tragicamente, dolorosamente pela sorte dos que morriam e desapareciam naquele trágico dia, naquele trágico local. É uma América solidária, sem olhar a cores ou credos que se abraça, se une, se ajusta para formar uma barreira contra a desgraça. Há um momento brilhante numa sala de espera de um hospital, quando uma branca e uma negra trocam confidências sobre marido e filho. E se abraçam, e choram, e naquele momento não se compreende o que é isso de racismo, de divisões sociais, de diferenças. É a humanidade que se abraça, a branca e a negra, as lágrimas que se fundem, eu, tu, elas, eles. Segunda metáfora do filme.
Ok. Mas será este o filme desapaixonado politicamente que muitos apregoam? Não há filmes apolíticos. Nada é apolítico. Tudo é político: um filme, um texto, uma posição assumida, um olhar, um gesto. Um travelling em cinema, como já dizia Godard. Uma questão de moral, logo uma questão também estética, política. Tudo tem a ver com tudo. Logo após os atentados de 11.9.2001, Oliver Stone parece ter afirmado “que os Estados Unidos estavam a pagar pela arrogância com que tratavam o resto do mundo”. Toda a gente pensava agora num filme que fosse uma crítica contundente à administração de George W. Bush. Oliver Stone ignorou a questão. Em lugar de um filme para dividir os americanos, tentou realizar um filme para unir os americanos. Acontece que não ignorou George W. Bush e colocou-o, numa emissão de televisão, a proferir um discurso “anódino”. E não se esqueceu de citar também o fuzileiro Dave Karnes (Michael Shannon, branco quando o verdadeiro Karne é negro), figura central no salvamento dos dois polícias, mas que tem um discurso (discreto, é certo), de vingança que parece ratificar toda a política subsequente da Administração Bush. Às vezes, ao se querer ser muito imparcial, cai-se no extremo oposto. “World Trade Center”, de Oliver Stone, que os falcões americanos apreciaram, com alguma surpresa, deixa-nos a nós também de alguma forma surpresos. Julgo que “United 93” cumpre muito melhor as suas funções. Além de que “World Trade Center” não nos parece ser também cinematograficamente uma obra brilhante, apenas um eficaz trabalho na linha do “filme catástrofe”, ajudado por bons actores (além dos já citados, refira-se ainda a excelência dos desempenhos de Maria Bello e Maggie Gyllenhaal), onde o talento evidente de Oliver Stone vem ao de cima aqui e ali. Mas esta tendência para ser, ao menos uma vez na vida, um “bom americano”, acho que o tramou. Bom americano sempre foi quando foi irreverente e cáustico. Não quando se curva à maioria (a 50% dos americanos, diga-se que há uns anos já) em nome de uma unanimidade que não existe.
WORLD TRADE CENTER (World Trade Center), de Oliver Stone (EUA, 2006), com Nicolas Cage, Michael Pena, Maria Bello, Stephen Dorff, Jay Hernandez, Maggie Gyllenhaal, etc. 129 min; M/12 anos.

CINE ECO 2006

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