domingo, janeiro 24, 2010

CINEMA: A ESTRADA

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A ESTRADA

Estamos na América, mas poderíamos estar “no mundo”. Há um homem e uma criança, pai e filho, a percorrer estradas, rumo ao Sul. Mas não há um homem e uma criança apenas. Esse homem e essa criança são mais do que um homem e uma criança. Se fossem só isso, teriam nomes. Mas não os ostentam. São “o” Homem, “a” Criança. Símbolos exemplares de uma parte da Humanidade. De uma Humanidade que colapsou sabe-se lá porquê e como e quando. Estamos num planeta destruído, onde ainda se vão verificando réplicas de tremores de terra que transformam o solo que pisamos num mar agitado. Conflito natural, ou bomba nuclear? Terramoto ou atentado? O que se sabe é que a Terra é um lugar perigoso, muito perigoso, infestado por homens maus, que um homem e uma criança bons procuram evitar, e “chegar ao Sul”. O que divide os “good guys” dos “bad guys”, se todos eles têm fome e frio, vivem ao abandono e sobrevivem vegetando? Uns são canibais e os outros não, teimam em não se alimentarem de carne humana. Uns e outros vão morrer. Alguns suicidam-se para não enfrentar o dilema, a escolha. Os que ficam ou resistem na sua humanidade ou prevaricam na sua desumanidade. Restos humanos são encontrados aqui e ali, caveiras espetadas em estacas ornamentam jardins secos de vida, crianças servem-se grelhadas como pitéus apetecíveis, há mesmo dispensas de carne viva, caves que mais parecem galinheiros onde, à falta de galináceos, se guardam pessoas para serem comidas mais tarde. Quando chegar o momento e o frio do inverno apertar. Neste mundo, as árvores erguem-se mortas ou caem ruidosamente sobre a terra. Secas. Exaustas. As cidades estão desertas, ou quase, pois se pode adivinhar a cada esquina um caçador faminto em busca do que quer que seja que o alimente por mais uns dias, ou de um par de sapatos para os pés em chaga, ou de um cobertor para o proteger do ar gélido e da neve que cai. As estradas estendem-se sem fim na desolação do vazio ou da destruição mais completa e seriam terreno fácil de calcorrear, mesmo puxando um carrinho de supermercado, com os únicos haveres possíveis de transportar, se não existisse por todo o lado o perigo do “ outro homem”, da ameaça latente nos olhos com que se confrontam. Uma ameaça que pode vir de um camião em lento andamento rodeado por predadores esfomeados, ou de um ladrão fortuito, ou de uma família de canibais, ou do simples medo que se interioriza até também ele corroer os ossos.
Como se terá chegado aqui, a este extremo?
(Sem sequer o imaginar, Cormac McCarthy na escrita, e depois o realizador australiano John Hillcoat no cinema, antecipavam imagens e sentimentos que se projectam de Port-au-Prince, no Haiti).
“Nós somos os bons, nós não comemos pessoas, pois não?”, pergunta o filho ao pai, para se certificar pela milionésima vez de que são diferentes. O pai responde sempre que não, e vai afirmando que tudo está bem, que hão-se chegar ao Sul, à terra das “pessoas boas”. Curiosa regressão, ou inversão, no ideário americano, habituado a ir para Oeste, em busca de novas fronteiras, e para Norte, para a industrialização e o progresso. Terá sido a ideia de novas fronteiras e a sugestão de progresso que conduziram o mundo ao apocalipse? Será a descida para Sul, para o mar (“desculpa, não é azul, como te tinha prometido”, justifica-se o pai), o regresso ao passado rural e mais de acordo com a harmonia do homem com a natureza?
Um pai e um filho, numa paisagem inóspita, num mundo atroz, numa terra que escorre sangue, num território sem lei (recordando o farwest dos filmes de cowboys, onde as armas impunham a lei, tal como aqui, só sobrevive quem tem uma arma), caminham para Sul. São sobreviventes de algo de catastrófico, de um terror imenso que paira sobre a América do pós-11 de Setembro. Caminham com base num velho mapa, sem outras coordenadas que não seja a intuição. Palmilham quilómetros sem outra convicção que não seja uma esperança absurda numa remota hipótese de que nem toda a humanidade tenha desaparecido no coração dos homens. As areias das praias de Leste e o prometido aroma das terras do Sul são o destino.
"Naqueles primeiros anos, as estradas estavam cheias de refugiados amortalhados nas suas roupas. Usavam máscaras e óculos de protecção, sentados na berma com os seus andrajos no corpo, quais aviadores reduzidos à indigência. Traziam carrinhos de mão a abarrotar de bugigangas, puxavam carroças ou reboques. De olhos a brilhar no crânio. Carapaças de homens sem uma réstia de fé aos tropeções pelos viadutos, como bandos migratórios numa terra febril. A fragilidade das coisas enfim revelada." (in “The Road”).
Esta a obra de Cormac McCarthy, escrita numa linguagem descarnada e despida de ornamentos, tão seca e inóspita quanto a paisagem que descreve e os sentimentos que retrata. Uma escrita de que já se conhecia a rudeza e a limpidez de outras obras, mas que não deixa de surpreender pela secura. Um grande romance que valeu, em 2007, o Prémio Pulitzer ao seu autor, o escritor de que um outro romance já servira de base ao fabuloso filme dos irmãos Cohen, “Este País não é para Velhos” (“No Country for Old Men”).
O introspectivo e solitário Cormac McCarthy, avesso a entrevistas e aparições públicas, é, hoje em dia, considerado um dos grandes da moderna literatura norte-americana, colocado apenas ao lado de Philip Roth, Don DeLillo e Thomas Pynchon (foi o crítico literário Harold Bloom quem o afirmou). A sua carreira já conta com mais de quarenta anos, ao longo dos quais publicou dez romances, alguns editados em Portugal, “O Guarda do Pomar” (The Orchard Keeper, 1965), “Filho de Deus” (Child of God, 1974), “Belos Cavalos” (All the Pretty Horses, 1992), “Meridiano de Sangue” (Blood Meridian, or the Evening Redness in the West, 1985), “Este País Não é Para Velhos” (No Country for Old Men, 2005), “A Estrada” (The Road, 2006) e “Suttree” (1979). Os outros são “Outer Dark” (1968), The Crossing” (1994) e “Cities of the Plain (1998), além de duas peças de teatro, “Sunset Limited”, “The Stonemason” (1995). Não há complacências neste olhar angustiado e algo desesperado sobre o futuro do homem, mas a posição metafísica e a mitologia religiosa do autor nunca deixam de acenar na perspectiva de uma regeneração do Homem, de uma qualquer esperança, que até pode ser o nome de um barco encalhado junto à costa.
Cormac McCarthy não é novo no cinema, ainda que o seu universo só muito recentemente tenha começado a interessar a indústria cinematográfica. Diga-se que os seus romances não são o que normalmente se adapta bem a rentáveis produtos audiovisuais e nem a sua intransigência de trato se presta muito a compromissos. Mas já escrevera um argumento original para televisão, para um episódio da série "Visions" (1977), que tinha como título “The Gardener's Son”, dirigido por Richard Pearce. Depois, em 2000, Billy Bob Thornton adaptara a cinema “All the Pretty Horses” ("Espírito Selvagem"), antes dos Cohen o tornarem célebre com a sua magnífica versão de “Este País não é para Velhos” ("No Country for Old Men", 2007). Há ainda a referir uma curta-metragem de Stephen Imwalle, retirada de “Outer Dark”, em 2009. Agora “A Estrada” (2009) e já se anunciam “Blood Meridian” (2011), uma realização e adaptação de Todd Field, o mesmo que nos dera em 2006, “Pecados Íntimos”, "Little Children", e ainda uma versão de “Cities of the Plain”, escrita e dirigida por Andrew Dominik (o realizador de “O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford” (2007)), e prevista para 2012. Finalmente, “The Sunset Limited” está a ser adaptado a televisão, por Tommy Lee Jones (2010). Tarde descoberto, mas depressa recuperado pela indústria, pode dizer-se.
Se “Este País não é para Velhos” era uma obra notável, recriando sabiamente personagens situações e clima de Cormac McCarthy, “A Estrada” não andará longe, dado que recupera com grande fidelidade o espírito do romance, recriando-o numa atmosfera demencial de destruição e solidão, com excelente direcção artística, uma óptima escolha de locais de filmagem (na Pensilvânia, em redor do lago Erié e em zonas mineiras, na Louisiania batida pelo furacão Katrina, e ainda no Oregon), uma fotografia densa e dramática, e um envolvimento sonoro que, mesmo para um admirador de Nick Cave, se tenha mostrado um pouco excessiva, mas, como sempre, de grande qualidade.
John Hillcoat é australiano (nasceu em 1961, em Queensland), onde iniciou a carreira de argumentista e realizador. Documentários e vídeo clipes (1) foram a base da sua filmografia inicial, com uma colaboração íntima com Nick Cave que se estende até hoje (“The Road” tem banda sonora assinada por ele). Os seus filmes foram “Ghosts... of the Civil Dead” (1988), “To Have & to Hold” (1996), “Nick Cave and the Bad Seeds: Babe, I'm on Fire” (2003), “The Proposition” (2005), único conhecido do público português, com o título “Escolha Mortal”, e agora “A Estrada” (2009).
Para interpretar as duas figures centrais, sobre as quais repousa toda a duração do filme, Hillcoat escolheu dois actores excelentes, o rigoroso Viggo Mortensen, que se auto domina de filme para filme com um brilhantismo inexcedível, e o jovem Kodi Smit-McPhee, surpreendente na sua contribuição. Em pequenos papéis, Charlize Theron consegue emocionar em duas ou três cenas, Robert Duvall é precioso de concisão e Guy Pearce, a imagem requerida da esperança na continuação dos “homens bons”.
O filme não é pêra doce de consumo fácil, amarga na recordação de quem o vê, mas é um impressionante sintoma de uma época de mau estar que urge não perder de vista. Sob pena de um dia nos encontrarmos todos nessa mesma “estrada” sem fim.

(1) Videos: Siouxsie and the Banshees – “Stargazer” (1995), Manic Street Preachers – “Australia” (1996), Bush – “Personal Holloway” (1997), Placebo - "You don't care about us"(1998), “Therapy? - Church of Noise” (1998), “Therapy? - Lonely, Cryin' Only” (1998), Depeche Mode – “I Feel Loved” (2001), “Freelove” (2001) e “Goodnight Lovers” (2002). “Gemma Hayes - Hanging Around” (2002), “Nick Cave and the Bad Seeds - Babe I'm On Fire” (2003), AFI - "Silver and Cold" (2003). Documentários: “The INXS: Swing and Other Stories” (1985), “Alleys and Motorways” (1997) – “Documentary of the band Bush e Digital Hardcore Videos (2001).
A ESTRADA
Título original: The Road
Realização: John Hillcoat (EUA, 2009); Argumento: Joe Penhall, segundoo romance de Cormac McCarthy; Produção: Paula Mae Schwartz, Steve Schwartz, Nick Wechsler, Marc Butan, Mark Cuban, Erik Hodge, Rudd Simmons, Todd Wagner; Música: Nick Cave, Warren Ellis; Fotografia (cor): Javier Aguirresarobe; Montagem: Jon Gregory; Casting: Francine Maisler; Design de produção: Chris Kennedy; Direção artística: Gershon Ginsburg; Cenário: Robert Greenfield; Guarda-roupa: Margot Wilson; Maquilhagem: Mandi Crane, Rocky Faulkner, Toni G, Deborah Patino, Yoichi Art Sakamoto, Jennifer Santiago, Geordie Sheffer; Director de produção: Buddy Enright, Michelle Krumm, Jamey Pryde; Assistente de realização: Vernon Davidson, Ryan Krayser, John Nelson, Karen Radzikowski; Departamento de Arte: Edgar Um Bucholtz, Robert Greenfield III, Charles Miller, Mary O'Brien, Joseph Waterkotte; Som: Leslie Shatz; Efeitos Especiais: David Fletcher, Ken Gorrell, Thomas Kittle; Efeitos visuais: Joseph DiValerio, Mark O. Forker, John Karner, Adica Manis, Eric J. Robertson, Robert Stromberg; Companhias de Produção: Dimension Films, 2929 Productions, Nick Wechsler Productions, Chockstone Pictures, Road Rebel; Intérpretes: Viggo Mortensen (Homem), Kodi Smit-McPhee (Rapaz), Robert Duvall (Velho), Guy Pearce (Veterano), Molly Parker (Mãe), Michael K. Williams (Ladrão), Garret Dillahunt (Membro de Gang), Charlize Theron (Mulher), Bob Jennings, Agnes Herrmann, Buddy Sosthand, Kirk Brown, Jack Erdie, David August Lindauer, Gina Preciado, Mary Rawson, Jeremy Ambler, Chaz Moneypenny, Kacey Byrne-Houser, Brenna Roth, Jarrod DiGiorgi, Mark Tierno, Nick Pasqual, etc. Duração: 111 minutos; Classificação etária: M/ 16 anos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Estreia em Portugal: 7 Janeiro 2010.
para ler mais sobre Cormac McCarthy: AQUI
para ler sobre "Este País não é para Velhos: AQUI

segunda-feira, janeiro 18, 2010

GLOBOS DE OURO - VENCEDORES

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Os vencedores da 67.ª edição dos Globos de Ouros foram:

EM CINEMA

Prémio Cecil B DeMille
Martin Scorcese

Melhor filme dramático
Avatar

Melhor realizador
James Cameron – Avatar

Melhor comédia ou musical
A Ressaca

Melhor actor em filme dramático
Jeff Bridges – Crazy Heart

Melhor actriz em filme dramático
Sandra Bullock – The Blinde Side

Melhor actor em comédia ou musical
Robert Downey Jr. - Sherlock Holmes

Melhor actriz em comédia ou musical
Meryl Streep – Julie e Júlia

Melhor actor secundário em cinema
Christoph Walltz – Sacanas Sem Lei

Melhor actriz secundária em cinema
Mo'nique – Precious

Melhor Argumento
Jason Reitman, Sheldon Turner – Nas Nuvens

Melhor filme de animação
Up – Altamente!

Melhor Banda Sonora
Michael Giacchino - Up – Altamente!

Melhor Canção
Ryan Bingham e T Bone Burnett "The Weary Kind” - Crazy Heart

Melhor filme de Lingua Estrangeira
O Laço Branco - Michael Haneke

EM TELEVISÃO

Melhor série dramática
Mad Men

Melhor série cómica ou musical
Glee

Melhor actor em série dramática
Maichael C. Hall – Dexter

Melhor actriz em série dramática
Julianna Margulies – The Good Wife

Melhor actor em série cómica ou musical
Alec Baldwin – 30 Rock

Melhor Actriz em série cómica ou musical
Toni Collete – United States of Tara

Melhor mini-série ou filme para televisão
Grey Gardens

Melhor actor para mini-série ou filme para televisão
Kevin Bacon – Taking Chance

Melhor actriz para mini-série ou filme para televisão
Drew Barrimore – Grey Gardens

Melhor actor secundário série de televisão
John Lithgow – Dexter

Melhor actriz secundária série de televisão
Chloë Sevigny – Big Love

Quem acompanhar o que se escreve neste blogue sobre os filmes nomeados já estreados em Portugal vai descobrir uma quase total sintonia entre o que aqui se escreveu e os prémios atribuídos, com a excepção de "Up - Altamente!", que não provocu a minha completa adesão.

domingo, janeiro 17, 2010

"A NEVE" NA COVILHÃ

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EM BUSCA DE "A NEVE" PELOS CAMINHOS DA COVILHÃ

Partida de e regresso a Lisboa no Inter-Cidades, com dois dias e meio de paragem e permanência na Covilhã. Pouco vi da cidade, que tem uma parte antiga com vestígios abandonados dos tempos áureos dos lanifícios e amargas recordações humanas de misérias e prepotências, pouco vi da cidade que ostenta marcas bem conservadas da arquitectura do Estado Novo (a praça do município é um sóbrio e elegante recanto, infelizmente desfigurada pela intromissão de modernidades mal encaixadas), apenas percorri de carro as avenidas novas que estendem a cidade até fora de (antigas) portas, demonstrando certamente algum rejuvenescimento e novas actividades, onde a universidade tem um destacado papel. Dificilmente se andava na rua, o passeio turístico era quase impossível. Não pela neve, que só vi no teatro, mas pela chuva e o frio. E um nevoeiro denso. Ainda deu tempo para passar por um agradável museu, na companhia da Eduarda e do José Carretas, percorrendo cinco andares de arte sacra com algumas revelações curiosas. De resto, a agenda apertada em redor de Vergílio Ferreira não deixava igualmente tempo para outras delongas. Uma paragem no café Montiel, rápidos almoços e jantares para recordar algumas fortes tipicidades da região (e as papas de carolo), e o resto foi passado na companhia do Grupo de Teatro das Beiras, 30 anos de persistência na Serra, e no interior de Portugal, a representar textos como este “A Neve” segundo cinco contos de Vergílio Ferreira (“O Encontro”, “A Palavra Mágica”, “A Fonte”, “A Galinha” e “A Estrela”).
Durante a entrevista à Beira TV e durante o debate,
entre o professor Luis Nogueira, da UBI, e Sónia Botelho, do GTB
Dada a minha proximidade com o escritor e os filmes que sobre ele e com ele realizei, fui convidado a “abrilhantar” os festejos em redor de tão grato amigo e tão admirado escritor. A 14 de Janeiro passaram quatro filmes meus num dos auditórios da Universidade da Beira Interior, que assim se juntou igualmente às comemorações. A UBI tem um curso de cinema que funciona já há algum tempo, com resultados satisfatórios, e muitos alunos (cerca de 200 dispersos por cinco anos, segundo nos contaram). Em duas sessões por ali passaram “Vergílio Ferreira numa “Manhã Submersa” (50 ‘) e “Prefácio a Vergílio Ferreira” (15’), ambos documentários, e “Mãe Genoveva” (50’) e “Manhã Submersa” (127’), duas ficções sobre textos do escritor de Melo. O público não foi muito, mas a recepção parece ter sido muito simpática da parte de alunos, professores e actores. No dia seguinte, uma longa entrevista para uma televisão local e um demorado debate na sala do Café Concerto do Teatro das Beiras ocuparam a tarde toda a recordar Vergílio Ferreira, a sua obra, os filmes dela retirados, as grandezas e as misérias do cinema português. Enfim, o normal, mas com boa adesão de público e de questões.
À noite, na sala do Teatro das Beiras, vi “A Neve”.
Impressões? Globalmente boas mas, antes de lá chegar, reforçar a heróica resistência do que é ser uma companhia de teatro residente no interior do país. Fazer teatro na Covilhã, há trinta anos, é obra. Uma média de quatro espectáculos por ano: dois em sala, um ao ar livre e um infantil. Um sala com 90 lugares, desviada do centro da cidade, para lá se chegar descem-se rampas, ruas e azinhagas, depois escadas e mais escadas. Numa noite chuvosa e fria como aquela em que lá estive, havia aquecimentos aqui e ali para cortar o agreste do ambiente. Cerca de 50 espectadores bem agasalhados, dispersos pelas cadeiras vermelhas. É heróico encenar e representar assim, mas também é heróico ser-se espectador. Entretanto, na praça principal da Covilhã, quase ao lado do palácio do Município, jaz (quase) morto e arrefece um Cine-Teatro que deverá ter tido os seus dias áureos nos anos 50 do século passado (quando os cine-teatros eram populares e se disseminavam pela província em réplicas do lisboeta Monumental). Olha-se e percebe-se que está “encerrado para obras” há anos. Portanto nada de muito urgente, certamente. “É a cultura!”, como diz o outro.

Agora a peça: dois reparos iniciais em relação à adaptação e que têm a ver seguramente com uma opinião pessoal, que se rege por gosto e estilo próprios. Acho que globalmente o tom do espectáculo está um pouco distante do universo agreste e trágico de Vergílio Ferreira, mesmo quando este se serve do humor e da ironia. Talvez esta sensação derive do facto de existirem, como ponto de partida, cinco contos, cinco unidades distintas, cinco pequenas histórias entrelaçadas. Este aspecto talvez impeça uma progressão dramática que imponha uma outra densidade de clima que me parece essencial. Cada episódio esboça uma situação, recria um ambiente, mas na totalidade sinto que não consegue impor um clima denso. Questão de fundo, é certo, mas apesar disso uma observação que não invalida o resultado final do esforço da companhia. O despojamento e a simplicidade funcionam bem, a poesia dura e fria paira no palco, a desesperança e o rigor da noite beirã estão lá, o ressuscitar de um tempo de angústia e solidão maior pressentem-se. Este é um cenário sem amor, com rara solidariedade, com temor e “neve”. Neve que é branca, mas fere como uma faca afiada.
Aceitando esta premissa, a encenação é bastante boa, inteligente, cheia de pequenos apontamentos (o início com a apresentação do escritor, a cena das galinhas, o episódio da “estrela”) que denotam o talento e a experiencia de José Carretas. O elenco é jovem, mas eficaz e homogéneo (Fernando Landeira, Pedro Damião, Pedro da Silva, Rui Raposo Costa, Sónia Botelho e Teresa Baguinho), cenários, adereços e figurinos funcionam muito bem (Nuno Lucena, José Carretas e Margarida Wellenkamp), o desenho de luz cria a ambiência requerida, a música original mostra-se inspirada (Telmo Marques).
Vergílio Ferreira continua vivo, com fervorosos admiradores, que passam de geração em geração esta “neve” serrana que esteve na génese de tanta da sua criação literária.




Com José Carretas, ladeando a estátua A Mãe.

Com Sónia Botelho, actriz, entusiasta maior de Vergilio Ferreira,
Fernando Sena, director da Companhia do Teatro das Beiras, e Rui Raposo Costa, actor.
(fotos gentilmente cedidas por MEC)

quarta-feira, janeiro 13, 2010

VERGÍLIO FERREIRA NO CINEMA E NO TEATRO

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No Teatro das Beiras, Aqui:
Lauro António encontra
Vergílio Ferreira na Covilhã

Como introdução ao espectáculo "A NEVE", e dentro das actividades “Vergiliando – viagem ao universo de Vergílio Ferreira”, temos o prazer de receber Lauro António, apreciador de Vergílio Ferreira e da sua obra. A 14 de Janeiro, na Cinubiteca da Universidade da Beira Interior serão projectados o documentário “Vergílio Ferreira numa Manhã Submersa”, a longa metragem “Mãe Genoveva”, o documentário “Prefácio a Vergílio Ferreira” e a longa metragem “Manhã Submersa”. A 15 de Janeiro, no café teatro do Teatro das Beiras, às 16:00, haverá uma conversa sobre "Vergílio Ferreira no cinema" com Lauro António.


Horário das actividades:

(todos os filmesde Lauro António sobre Vergílio Ferreira)


Dia 14, na Cinubiteca da Universidade da Beira Interior
18,00 H “Vergílio Ferreira numa “Manhã Submersa” – doc. 50 ‘
19,00 H “Mãe Genoveva” - ficção 50’
22,00 H “Prefácio a Vergílio Ferreira”– doc. 15’
22,20 H “Manhã Submersa”- ficção 127’


Dia 15, no Café teatro do Teatro das Beiras
16,00 H Conversa sobre Vergílio Ferreira no cinema com Lauro António
21,30 H Espectáculo “A Neve”

Lauro António nasceu a 18 de Agosto de 1942, em Lisboa. Licenciado em História, foi membro do Cine-clube Universitário de Lisboa e, mais tarde, director do ABC Cine-Clube, actividades que o levam à crítica cinematográfica a partir de 1963 e, mais tarde, à coordenação da programação de algumas salas e festivais de cinema. Como sucedeu com outros cineastas da sua geração, particularmente activos após a Revolução de 25 de Abril de 1974, uma forte componente do seu trabalho destinou-se à televisão. Foi para a RTP que realizou em 1983 um conjunto de longas-metragens, sob a designação comum de Histórias de Mulheres, constituído por quatro títulos: Paisagem sem Barcos, Mãe Genoveva, Casino Oceano e A Bela e a Rosa.
Lauro António tem prosseguido a sua actividade como ensaísta e documentarista, tendo-se, porém, nos últimos anos mantido afastado do cinema. Manhã Submersa estreada no Festival de Cannes de 1980 permanece como a obra maior do realizador. Nos inícios da década de 1990 esteve associado com a rede de televisão portuguesa TVI para a qual foi programador de cinema e na qual teve um horário especial em que apresentava filmes da sua escolha, chamado Lauro António apresenta.
Para mais informações sobre o cineasta:
http://www.imdb.com/name/nm0031642/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lauro_Ant%C3%B3nio
http://lauroantonioapresenta.blogspot.com/
Janeiro 12, 2010 (transcrição da notícia do site do "Teatro das Beiras")

HOMENAGEM


Lhasa de Sela

(27 de Setembro de 1972-1 de Janeiro de 2010)

CANTAR PELA PAZ

ALL YOU NEED IS LOVE

165 países em uníssono cantam pela Paz
(roubado à Mec, porque merece)

segunda-feira, janeiro 11, 2010

CINEMA: AVATAR

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AVATAR

Sim, julgo que “Avatar” é um acontecimento. Uma revolução nos caminhos do cinema, mas não me parece que o seja somente no campo das novidades tecnológicas, quer se fale da imagem, da animação, das 3D ou mesmo do som. “Avatar” é realmente o primeiro filme em 3D que os jovens podem (e devem) ver, mas que se destina a todos os públicos e que, sobretudo, os adultos colherão muitos ensinamentos se não o perderem. Ensinamentos e prazer.
“Avatar” é uma experiência única até hoje no cinema. É evidente que os irredutíveis, aqueles para quem o cinema acabou em Murnau, ou quanto muito nos clássicos dos anos 40 e 50, esses acharão “Avatar” uma monstruosidade tecnológica. Mas em arte, como em tudo o mais na vida, nada pára, tudo se transforma, e “Avatar” representa hoje em dia, por exemplo, o que “Citizen Kane” representou em 1942. Uma revolução no cinema, possibilitada por novos meios técnicos, mas que um realizador de génio coloca ao serviço de uma narrativa e de uma ideia.
Se “Avatar” não fosse em 3D seria um filme extremamente interessante. Não compreendo os que falam de uma historieta simples e fraquinha. Sem interesse. Muito pelo contrário. O argumento de “Avatar”, criado por James Cameron, é excelente. Fala-nos de Jake Sully, um ex-fuzileiro naval, agora paraplégico, que se arrasta numa cadeira de rodas, a quem é proposta uma segunda vida: dele será retirado um avatar, um ser geneticamente reconstruído, mesclando o seu ADN com o dos indígenas de Pandora, os chamados Na`vi, considerados bárbaros inimigos do progresso, que se opõem à extracção de um minério raro, o “unobtanium”, que os humanos perseguem. É conveniente recordar que Pandora é uma lua que tem um ambiente muito semelhante ao da Terra. Ela gira em redor de uma massa gasosa a que dão o nome de Polyphemus, situada em Alpha Centauri-A, num longínquo sistema estelar a quatro anos-luz do nosso planeta. Mas, aí a atmosfera é altamente tóxica, os homens só podem viver de máscara, ou através de “avatares”, réplicas que combinam os ADNs humanos com os dos Na`vi.
O avatar de Jake Sully é o enviado da Terra para que a pilhagem se cumpra. Parte com essas intenções, mas cedo descobre que os Na`vi são um povo pacífico que apenas procura continuar a viver no seu habitat natural em perfeita harmonia com a natureza. Lentamente Jake Sully vai descobrindo o que está por detrás da invasão, desta colonização selvagem, em busca de lucro fácil e de formas de prolongar a política de terra queimada dos humanos insensíveis a tudo o que não seja rentabilizar os meios colocados sob a sua alçada. A sua integração entre os Na`vi é completa, acabando mesmo por casar com Neytiri, uma das guerreiras da tribo. Como aliada na nave espacial apenas conta de início com a Drª. Grace Augustine, mas à medida que a brutalidade da intervenção se vai tornando evidente, mais aderentes conquista para a sua causa: impedir a destruição dessa lua utópica chamada Pandora.
Retirem-se os adornos dos Na`vi e a história poderia ser a de um qualquer western clássico. Ou não clássico. Em vez de peles-vermelhas substituam-nos por peles-azuis. Em vez da conquista do Oeste, a conquista do espaço. Sempre a conquista de “novas fronteiras”. De novo a corrida ao ouro, mas agora o ouro tem um outro nome. Basta, pois, recordar “Dança com Lobos”, de Kevin Costner (1990), história de um ex-soldado que é recolhido por uma tribo de índios e, depois de os compreender, se integra na sua maneira de viver, que acha muito mais justa do que a do exército a que pertencia e se coloca do lado dos índios, combatendo antigos camaradas de armas. “Avatar” resume a mesma filosofia, mas com ressonâncias mais modernas. Há o aspecto ecológico a ressalvar, quando se levanta contra a destruição de uma civilização antiga e onde impera a harmonia homem-natureza, em nome de um falso progresso, movido apenas pelo lucro. Mas mais ainda. Este é um filme anti-imperialista, que combate a ideia de um povo se sentir autorizado, apenas pelo seu poderio militar, a invadir outro, com um único propósito, que pode ser o petróleo ou o “unobtanium” (num caso como noutro, elementos que são fonte de energia).
Curiosamente, o paralelismo com os índios americanos é mais do que evidente e em várias perspectivas. Vermelhos e azuis deparam-se com a cupidez dos “rostos pálidos”, usam vestimentas ou simples adereços muito semelhantes, caçam com arco e flecha, têm gritos de guerra e danças rituais idênticas, e até os deuses se aproximam (os Na’vi adoram Eywa que tem muitos pontos de contactos com divindades índias). De resto, matam somente para comer e aceitam esse sacrifício como “justo”.
Não ficam muitas dúvidas sobre as intenções da obra e se James Cameron esperou quase duas décadas para poder ter as condições tecnológicas para se permitir erigir o universo de Pandora, não é menos verdade que a espera teve igualmente o condão do filme se encaixar no seu tempo histórico e ideológico: esperemos que este seja um filme da era Obama.
Este híbrido que nasce do cruzamento de “A Conquista do Oeste” com “A Guerra das Estrelas”, e de “Pocahontas” com “O Gigante”, mistura igualmente imagem real e animação digital. Situa-se hipoteticamente em 2156, mas a verdade é que, se nada se fizer rapidamente, em termos ecológicos e militares, impondo limites decentes à ambição desmedida de (alguns) homens (infelizmente os mais poderosos, e não pelas melhores razões), muito poucas hipóteses teremos de chegar a essa data.
Deixando agora de lado o argumento, atentemos em toda a parafernália tecnológica que o reveste. Será necessária? Funciona como roupagem para “épater le bourgeois”? Creio que raras vezes a tecnologia se mesclou tão harmoniosamente com a história que quer contar. James Cameron sabia que precisava de alguns recursos técnicos para tornar plausível o seu projecto que esperou longos anos até ser concretizado. O resultado é deslumbrante. Sobretudo não há um plano desnecessário para “mostrar” a excelência dos efeitos, não existe um movimento excessivo para explorar as 3D. Tudo está lá porque é essencial, indispensável para o resultado final. A descrição de Pandora é admirável, de uma beleza sufocante e sufocante é um bom termo porque nos encontramos inscritos, emergidos na natureza, sentimos animais e flores, árvores e insectos, indígenas e carros de assalto a passarem a nosso lado de forma tão realista quanto fantástica. A criação em imagem virtual, digital, das paisagens, dos ambientes, das sugestões imagéticas é algo até agora nunca visto. A forma como são plasticamente criadas, como são iluminadas tridimensionalmente, como a luz as atravessa (efeito que as 3D acentua), é absolutamente entorpecedor, como se de uma viagem psicadélica se tratasse, em que o fascínio nos conduzisse mansamente até ao efeito desejado. A partir de agora, desde que saímos da projecção de “Avatar”, Pandora existe algures, nem que seja só na nossa imaginação. Esse efeito de sugestão é brilhantemente conseguido, e, repetimo-lo, de forma absolutamente harmoniosa, sem se impor abusivamente, impondo-se antes subtilmente à medida que as imagens se sucedem e vamos mergulhando no seu turbilhão. Cameron consegue o prodígio de criar um universo fantástico e de o tornar “real”. Não que o saibamos real, mas porque o aspiramos utópico.
O mesmo se pode dizer das personagens, mais uma vez criadas pelo processo de “performance capture” que combina o corpo e a representação do actor com o revestimento da silhueta pela capa da animação. Jake, Neytiri ou a Dr.ª Grace são criações notáveis de um realismo-irrealista que é uma novidade absoluta em cinema, muito embora se saiba que esta técnica foi de certa forma aperfeiçoada por Peter Jackson para a sua trilogia “O Senhor dos Anéis”, e que muitos outros realizadores já a utilizaram (ainda há pouco Zemeckis, em “Conto de Natal”).
Refira-se que muitos dos efeitos especiais de “Avatar” foram criados pela celebérrima “Industrial Light & Magic”, de George Lucas, mas a “captura de movimento” dos avatares e dos indígenas de Pandora foi desenvolvida pela “Weta Digital”, de Peter Jackson, que a utilizou na construção da personagem Gollum, em “O Senhor dos Anéis”, e, mais tarde, na derradeira versão de “King Kong”.
Este é um filme importante, pois, por diversos motivos e uma aventura para os sentidos de quem o for ver no cinema. No cinema e preferencialmente em 3D. É como entrar num aquário e flutuar ao sabor da magia de um demiurgo que nos conduz por terras de sonho e, todavia, nos acorda, sobressaltados, para o futuro do nosso planeta e para os perigos das ingerências abusivas dos negócios sujos nas vidas dos povos.

James F. Cameron é canadiano de Ontário, filho de uma enfermeira e de um engenheiro electricista. Cresceu em Chippawa (agora Niagara Falls), estudou no Stamford Collegiate e mudou-se com a família para a Califórnia em 1971. Estudou filosofia na Universidade de Toronto, em 1973, e era visita frequente dos arquivos de filmes da University of Southern Califórnia. Aí se começou a interessar por cinema, ficando fã de “A Guerra das Estrelas IV” em 1977, quando a viu pela primeira vez. Dedicou-se então inteiramente ao cinema, abandonando a profissão de camionista de longo curso. Foi admitido como colaborador de Roger Corman, onde começa a aperfeiçoar um modelo de mini câmara e aprendeu a trabalhar com orçamentos mínimos (o que veio a contrariar no futuro!). Produziu o seu primeiro filme, “Battle Beyond the Stars” e, posteriormente, assinou os efeitos especiais numa obra de John Carpenter, “Fuga de Nova York”. Grande parte das suas principais obsessões estavam traçadas. Iniciou a carreira como realizador com “Xenogenesis” (1978), a que se seguiu “Piranha Part Two: The Spawning” (1981). “O Exterminador Implacável” (The Terminator, 1984), “This Time It's War” (1985), “Aliens, O Resgate” (Aliens, 1986), “O Abismo” (The Abyss, 1989), “Exterminador Implacável 2: O Dia do Julgamento” (Terminator 2: Judgment Day, 1991), “A Verdade da Mentira” (True Lies, 1994) e “T2 3-D: Battle Across Time” (1996) foram os títulos que cimentaram uma carreira que lhe permitiu abalançar-se num dos filmes mais caros de sempre, “Titanic” (1997), e que foi, simultaneamente, o mais premiado de sempre nos Oscars e o mais rentável de sempre nas bilheteiras (até agora – veremos o que faz “Avatar”). Seguem-se filmes para televisão, “Earthship.TV” (2001), "Dark Angel - Freak Nation” (2002), “Expedition: Bismarck” (2002), “Ghosts of the Abyss” (2003) ou “Aliens of the Deep” (2005), enquanto se preparava para “Avatar” (2009). Tem em pré-produção um novo projecto, “Battle Angel” (que se anuncia para 2011).


AVATAR
Título original: Avatar
Realização: James Cameron (EUA, Inglaterra, 2009); Argumento: James Cameron; Produção: Brooke Breton, James Cameron, Jon Landau, Josh McLaglen, Janace Tashjian, Peter M. Tobyansen, Colin Wilson; Música: James Horner; Fotografia (cor): Mauro Fiore; Montagem: James Cameron, John Refoua, Stephen E. Rivkin; Casting: Margery Simkin; Design de produção: Rick Carter, Robert Stromberg; Direcção artística: Todd Cherniawsky, Kevin Ishioka, Kim Sinclair; Decoração: Kim Sinclair; Guarda-roupa: Mayes C. Rúbeo, Deborah Lynn Scott; Maquilhagem: Rick Findlater; Direcção de Produção: Helen Clare, Mika Saito, Jennifer Teves, Brigitte Yorke; Assistentes de realização: Maria Battle-Campbell, Bruno Dubois, Sarah Lowe, Richard Matthews, Josh McLaglen, Steven Quale, Sharon Swab, Judith Wayers; Departamento de arte: C. Scott Baker, Luke Caska, Andrew Chan, Scott Herbertson, Joseph Hiura, Tammy S. Lee, Darryl Longstaffe, Karl J. Martin, Richard F. Mays, Michael Smale; Som: Christopher Boyes; Efeitos especiais: Karl Chisholm, Iain Hutton, Steve Ingram; Efeitos visuais: Laia Alomar, Malcolm Angell, Manasi Ashish, Dean Lewandowski, Brice Liesveld, Jennifer Loughnan, Steve Riera, Mahria Sangster, Bryan Searing, Wayne Stables, Colin Strause, Greg Strause, Guy Williams, Michael Zavala; Animação: Richard Baneham, Miguel A. Fuertes, Aldo Gagliardi, Scott Patton, Ben Sanders, Jarom Sidwell, Danny Testani; Companhias de produção: Twentieth Century-Fox Film Corporation, Dune Entertainment, Giant Studios, Ingenious Film Partners, Lightstorm Entertainment; Intérpretes: Sam Worthington (Jake Sully), Zoe Saldana (Neytiri), Sigourney Weaver (Dr. Grace Augustine), Stephen Lang (Coronel Miles Quaritch), Michelle Rodriguez (Trudy Chacon), Giovanni Ribisi (Parker Selfridge), Joel Moore (Norm Spellman), CCH Pounder, Wes Studi, Laz Alonso, Dileep Rao, Matt Gerald, Sean Anthony Moran, Jason Whyte, Scott Lawrence, Kelly Kilgour, James Pitt, Sean Patrick Murphy, Peter Dillon, Kevin Dorman, Kelson Henderson, David Van Horn, Jacob Tomuri, Michael Blain-Rozgay, Jon Curry, Julene Renee, Luke Hawker, Woody Schultz, Peter Mensah, Sonia Yee, Ilram Choi, Kyla Warren, Dean Knowsley, Nikie Zambo, etc. Duração: 162 minutos; Distribuição em Portugal: Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 17 de Dezembro de 2009.

quinta-feira, janeiro 07, 2010

CINEMA: ÁGORA

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ÁGORA
Alexandria, no séc. IV, era uma cidade charneira no Médio Oriente, e essa época era igualmente um período de profundas transformações políticas, sociais e religiosas. Alexandria era uma cidade situada no Egipto, administrada pelo Império Romano, onde se cruzavam várias culturas e diversas religiões. É sabido que a convivência entre religiões não é quase nunca pacífica, e muitas vezes os políticos servem-se disso para inflamar os ânimos e provocar a violência e a guerra. Nunca de uma forma ingénua, acrescente-se. As guerras santas são as mais hipócritas e indefensáveis das guerras. Mas muitas das mais sangrentas guerras da História da Humanidade tiveram justificações religiosas, quando o que estava sempre em jogo eram questões de lutas pelo poder. Em Alexandria tal também aconteceu, como o demonstra, de alguma forma, “Ágora”, de Alejandro Amenábar, segundo um argumento escrito por si e por Mateo Gil, tendo como personagem central e aglutinadora de factos a figura de Hipátia (Rachel Weisz), mítica matemática, filósofa, astrónoma e professora.
O filme decorre nos últimos anos do século IV e inícios do V (Hipátia é assassinada em 415) e mostra-nos, em termos gerais, as lutas pela supremacia religiosa na região. O Império Romano tinha-se cristianizado, mas em Alexandria coexistiam diversas crenças, com uma relativa liberdade de culto. Os deuses antigos do Egipto conviviam com o Cristo de Judeus e Cristãos. Estes haviam sido violentamente perseguidos durante séculos, mas conseguiram impor-se. Não contente com ser aceite, e mesmo proclamada a religião oficial dos Romanos, a Igreja Católica procura agora ser hegemónica, sendo necessário para isso ilegalizar todos os outros cultos e exterminar os seus seguidores. O filme inicia-se em 391 e assinala o momento mais aceso da luta pelo poder entre adoradores de Osíris, Íris e Horus, os judeus das sinagogas e os cristãos das catedrais. Não é uma luta de palavras e de crenças, mas uma luta armada com as armas que tinham na mão. O representante de Roma procura manter uma certa neutralidade, apesar de se dizer cristão, mas no resto cada um procurava tirar desforço e vingar-se do que o ou os rivais haviam feto anteriormente. Nada de dar a outra face às agruras da agressão. Antes o quem com ferro fere, com ferro morre. Portanto, em escalada. Os cristãos que tinham criado os “parabolanos”, uma espécie de exército de salvação para ajudar os desvalidos, transportar doentes, tratar dos leprosos, etc., tudo coisas da maior grandeza espiritual e do mais sagrado humanismo, cedo esqueceram essas tarefas e transferiram a multidão desse corpo de soldados, que chegou a atingir os 800 elementos, para outro tipo de tarefas: perseguir “bárbaros” (o “bárbaros” são sempre os outros, os que não são como nós), destruir tempos pagãos (ou seja, os que professam uma crença que não é a nossa), assassinar e prender os ímpios (mais uma vez os “outros”) e impor a sua crença (porque acreditam que ela é “a verdadeira” e, como tal, tem de ser a “única”, logo imposta, se necessário for). Primeiro anularam-se as crenças primitivas que já vinham do antigo Egipto e assinalavam a ligação do Homem à Terra, e eram de certa forma femininas e matriarcais. Depois os judeus encurralados agrediram os cristãos que ripostaram e limparam o terreno, levando tudo à frente, templos destruídos e até a importante biblioteca, onde se guardava toda a sabedoria do mundo, incendiada e esventrada. Estátuas e monumentos, templos e papiros tudo voou na voragem da intolerância. A horda assassina de cristãos era fundamentalmente constituída pelos “parabolanos”, a guarda do patriarca, mas muitos historiadores falam igualmente de monges e outros clérigos que conseguiram inflamar as mentes da populaça. Foram eles que conduziram os assaltos e a pilhagem e propagaram a destruição. Este o quadro geral.
O pormenor: Hipátia.
Pouco se sabe de Hipátia de Alexandria, com base em documentação histórica factual. A totalidade dos seus escritos desapareceu (alguns historiadores falam apenas na sobrevivência de dois manuscritos que sobraram, duas revisões de obras do pai, mas nada assegura que sejam da sua mão). O que se sabe é por portas e travessas e muito através da correspondência que Sinésio, um aluno seu, manteve com ela ou com outros colegas de aulas. Não se sabe quando nasceu, apenas se avançam datas possíveis. Sabe-se que morreu em 415 e que dava aulas muito frequentadas por alunos pertencentes à elite de Alexandria (e arredores), nas décadas de 380 e 390 (continuando até à data da sua morte). Uns afiançam que morreu com cerca de 60 anos, outros um pouco mais nova.
Hipátia parece ter sido uma astrónoma notável para o seu tempo, uma matemática inspirada, uma filósofa com um instinto de curiosidade e de compreensão do mundo notáveis, e sobretudo uma mulher muito especial para a época. Num mundo dominado pelos homens (e que seria depois cada vez mais patriarcal em certos aspectos), ela conseguiu sobressair de forma invulgar, ser ouvida nos negócios da cidade, respeitada e olhada com admiração por iguais e alunos. Apesar de alguns inimigos seus a fazerem passar por bruxa e feiticeira e outros lhe chamarem prostituta, particularmente em virtude do seu relacionamento com um aluno em especial, Oreste, que viria mais tarde a ser o representante de Roma em Alexandria, Hipátia jurou não manter qualquer tipo de relações mais íntimas com nenhum humano. Ela casara com a ciência, com a astronomia, e parece que era assim feliz, até se iniciarem as perseguições. Há mesmo um episódio na sua vida muito sintomático, e que aparece no filme, referindo-se a Oreste, mas que aconteceu com outro aluno (uma liberdade narrativa que reuniu num só pretendente factos pertencentes a dois, o que tem de se admitir numa obra que não é precisamente um documentário). Na verdade, segundo relatos de um tal Damáscio (1), um jovem aluno de Hipátia, perdidamente enamorado da professora, conseguiu a coragem necessária para se declarar. Esta resolveu castigá-lo. No dia seguinte trouxe-lhe uma prenda, um pano contendo o sangue da sua menstruação, e perguntou-lhe” É isto o que na realidade amas?”. Mostrou-lhe assim a dimensão física do corpo, ao lado da beleza inexpugnável dos conceitos da matemática ou da filosofia. Discutível, claro, mas uma forma de afirmar a sua invulnerabilidade aos prazeres carnais.
O filme de Alejandro Amenábar vai buscar esta mulher para o centro do seu “Ágora” alexandrino e é ela que serve de fio condutor às peripécias políticas e religiosas que marcaram aquele tempo e que haviam de a marcar a ela. Acompanhamos as suas aulas, o seu gosto pela astronomia (e pela astrologia, nesta altura duas disciplinas que se confundiam), a discussão sobre as teorias de Ptolomeu, a forma como impunha uma convivência tolerante nas suas aulas (onde todos os alunos eram “companheiros” e “irmãos”, apesar das suas diferenças religiosas), a maneira como convivia com os escravos, sobretudo com Davus, o seu escravo pessoal, as suas conversas e trocas de ideias com Theon, seu pai e director da importante biblioteca de Alexandria, a sua importância como personalidade da cultura e da política na cidade. Até ao dia em que se tornou indesejável, por tudo isso, perante os fanáticos religiosos, que viam nela um obstáculo ao seu completo domínio. Ela representava a voz da tolerância e da diferença, ela era aquela que defendia a coexistência, ela era o grão de areia que impedia a engrenagem de avançar a todo o vapor numa só direcção. Por isso aproveitaram-se de uma oportunidade, um pretexto, uma inventona, chamaram-lhe bruxa, foram-na buscar a casa, arrastaram-na pelos cabelos até ao tempo mais próximo, onde a desmembraram e cortaram a cabeça, uns dizem que a esfolaram viva, todos são unânimes em afirmar que a humilharam e a destruíram, antes de conduzirem os restos para o centro de uma praça e para o cimo de um fogueira. Em Nome de Deus.
Estas lutas religiosas, como começou por se dizer, são as mais sangrentas e as mais dolorosas. O filme de Amenábar procura mostrar isso mesmo e não se ficar por relatar um caso exemplar da Antiguidade Clássica (precisamente o momento em que, para muitos, termina a Antiguidade Clássica e começa a Idade Média). Obviamente que lhe interessa documentar de que forma caem certas civilizações e sobre esses escombros outras se erguem, como se estabelecem certos ciclos culturais, religiosos, civilizacionais, como se atinge o poder e se procura manter o mesmo, de como as ditaduras surgem, com base da mentira, na propaganda, no medo. Obviamente que é esse um dos seus intentos, mas não o único. O bando de “parabolanos” não é por acaso que se vestem de uma forma que se confundem com os modernos talibãs. Aliás, é o próprio cineasta que o confessa em entrevistas: ele queria um guarda-roupa que distinguisse facilmente cristãos de Judeus e de alexandrinos e, mais do que isso, pediu à figurinista que criasse uma associação entre os “parabolanos” cristãos que assaltavam o poder e os talibãs de agora (que assaltam igualmente o poder mundial, e procuram destruir o Ocidente). A metodologia é a mesma, as intenções idênticas. Destruir para reinar, criar a terra queimada para sobre ela lançar uma nova semente. A ver vamos.
Sobre o filme muito há a dizer, ainda que, desde já, e apesar de todas as boas intenções e algumas qualidades, esta me parecer a menos conseguida de todas as obras de Amenábar (“Tesis”, “Abre os Olhos”, “Os Outros” e “Mar Adentro”). O cineasta pretendeu construir uma obra na melhor tradição dos filmes históricos que ficaram na recordação dos anos 60, como “A Queda do Império Romano”, “Spartacus”, “Barrabás”, “Ben Hur”, “Lawrence da Arábia” ou “Lord Jim”. Para o conseguir foi ao ponto de reconstruir grande parte de Alexandria, em Malta, e de utilizar muito pouco imagem digital (afirmando que assim tudo seria mais real). O orçamento subiu até aos 50 milhões de euros, metade do qual para cenários. O resultado é bom, mas não é brilhante, apesar de algumas cenas de exteriores, no ágora e nas ruas, serem bem conseguidas, e haver alguns interiores bem trabalhados. Mas curiosamente a movimentação das multidões, onde não há muita utilização de digital, parece paradoxalmente falsa, assim como a interpretação da maioria dos actores não é convincente, com excepção de Rachel Weisz, muito boa, e do eficaz e sóbrio Michael Lonsdale (Theon). Nestas condições, muito embora o significado da metáfora política e religiosa, “Ágora” coloca-se mais perto dos “peplums” italianos da mesma época do que das obras de Kubrick, Mann, Wyller ou Brooks.

(1) Muito interessante será ler “Hipátia de Alexandria”, da polaca Maria Dzielska, recentemente editado pela “Relógio d’ Água”.
:ÁGORA
Título original: Agora
Realização: Alejandro Amenábar (Espanha, Malta, 2009); Argumento: Alejandro Amenábar, Mateo Gil; Produção: Álvaro Augustín, Fernando Bovaira, Simón de Santiago, José Luis Escolar, Jaime Ortiz de Artiñano; Música: Dario Marianelli; Fotografia (cor): Xavi Giménez; Montagem: Nacho Ruiz Capillas; Casting: Jina Jay, Edward Said; Design de produção: Guy Dyas; Direcção artística: Dominique Arcadio, Matthew Gray, Stuart Kearns, Jason Knox-Johnston, Frank Walsh; Decoração: Larry Dias; Guarda-roupa: Gabriella Pescucci; Maquilhagem: Marcelle Genovese, Graham Johnston, David Martí, Jan Sewell, Suzanne Stokes-Munton; Direcção de Produção: Carlos Ruiz Boceta, Oliver Mallia, Gina Marsh; Assistentes de realização: Luis Casacuberta, Javier Chinchilla, Pierre Ellul, José Luis Escolar, Julian Galea, Ben Lanning, Mónica Sánchez, Carlos Santana; Departamento de arte: Lino Chetcuti, Bonello Chris; Som: Tom Sayers; Efeitos especiais: Kenneth Cassar; Efeitos visuais: Félix Bergés; Companhias de produção: Mod Producciones, Himenóptero, Telecinco Cinema, Canal+ España, Cinebiss; Intérpretes: Rachel Weisz (Hipátia), Max Minghella (Davus), Oscar Isaac (Orestes), Ashraf Barhom (Ammonius), Michael Lonsdale (Theon), Rupert Evans (Synesius), Richard Durden (Olympius), Sami Samir (Cyril), Manuel Cauchi (Theophilus), Homayoun Ershadi (Aspasius), Oshri Cohen, Harry Borg, Charles Thake, Yousef 'Joe' Sweid, Andre Agius, Paul Barnes, Christopher Dingli, Clint Dyer, Wesley Ellul, Angele Galea, George Harris, Jordan Kiziuk, Ray Mangion, Samuel Montague, Alan Paris, Christopher Raikes, Amber Rose Revah, Charles Sammut, Nikovich Sammut, Juan Serrano, etc. Duração: 126 minutos; Distribuição em Portugal: Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 10 de Dezembro de 2009.

quarta-feira, janeiro 06, 2010

MANUEL ALEGRE À PRESIDÊNCIA

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DECLARAÇÃO DE VOTO
(a tempo por causa do tempo)
Para os devidos efeitos, declaro que, quaisquer que sejam os outros eventuais candidatos à Presidência da República apresentados pela esquerda (ou as esquerdas), eu votarei Manuel Alegre, se este se candidatar, pois acho-o o único com possibilidades de se opor com eficácia a possíveis adversários políticos.
Julgo que é importantes que a esquerda (ou as esquerdas) saiba (ou saibam) o que pensa o eleitorado e se deixe (ou deixem) de floreados e jogos de bastidores que mais não farão do que dividir votos e oferecer de bandeja e mão beijada a vitória a quem for escolhido pela direita.
Por mim, tenho dito, a um ano e tal da eleição. Para que conste.
ilustração de André Carrilho

terça-feira, janeiro 05, 2010

DOSSIER SHERLOCK HOLMES, 2

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SHERLOCK HOLMES, VERSÃO GUY RITCHIE


Sherlock Holmes tem sido pano para muitas mangas, algumas de excelente qualidade, outras de um serrubeco muito manhoso. Mas houve até hoje criações em cinema e televisão que fizeram jus ao talento do criador literário. As versões que tiveram Basil Rathbone, Peter Cushing, Jeremy Brent, Robert Stephens, Nicol Williamson, agora Robert Downey Jr., como protagonistas são particularmente estimáveis, ao lado de outras ainda interessantes, muito acima de algumas dezenas totalmente irrelevantes (1).
Sherlock Holmes já deu para cima de duas centenas de títulos no pequeno ou grande ecrã. É um herói popular, apesar de nunca ter sido um aventureiro na linha de 007 ou Indiana Jones. O seu perfume é mais discreto, advinha-lhe nele um toque aristocrático, uma personalidade forte mas elegante a roçar o dandismo, a sedução de um pensamento rápido e de uma inteligência fulgurante, daquelas que deduzem em segundos o que uma pessoa normal leva dias a congeminar, quando lá chega. Claro que gostava de boxe e podia ter construído um carreira no sector, tinha conhecimento de artes marciais, mas raramente as utilizava no dia a dia, tinha licença de porte de arma e aproveitava-a quando as circunstâncias o impunham, corria e saltava sebes, fazia o elementar para se manter vivo, mas eram os dotes mentais, inclusive a sua pecha para um certo exotismo espiritualista, que lhe asseguravam a sobrevivência, em confrontos terríveis com as forças do Mal que o assolavam de todos os azimutes. Uma vez por outra, por desfastio e para aliviar o stress, consumia cocaína.
Agora surge um “novo” Sherlock Holmes que, diga-se desde já, não corta com a tradição, apenas inflecte numa outra direcção. Nada do que se pode ver neste “Sherlock Holmes”, de Guy Ruitchie, contradiz os escritos “sagrados” de Conan Doyle, está lá tudo, mas em doses diversas. O mental cede o seu lugar ao físico, a dedução lógica está presente, mas a acção toma a dianteira, é senhora do ritmo, segura a batuta. Há corridas, perseguições, tiros e explosões, lutas tremendas corpo a corpo, e não surpreende que as mesmas aconteçam no alto da Tower Bridge em construção. O produtor Joel Silver descreve-o como se fosse “James Bond em 1891”. Mas com alguns problemas de higiene pessoal, que se notam na indumentária, no rosto, e na desarrumação da casa.
O cenário é realmente Londres, como não podia deixar de ser, corre o ano de 1891, primeiro da última década do reinado da Rainha Vitória. Holmes (Robert Downey, Jr.) e John Watson (Jude Law), além de um atabalhoado Inspector Lestrade (Eddie Marsan), enfrentam uma clara ameaça para a cidade, o reino, o mundo. O tenebroso e perverso Lord Blackwood (Mark Strong), conspira, por artes mágicas – sim, isso mesmo, artes mágicas – e maquinaria nuclear – sim, isso mesmo, maquinaria nuclear “avant la lettre” –, para conquistar o mundo, depois de destruir o Parlamento britânico. Ao que parece, os argumentistas inspiraram-se na figura real de Aleister Crowley, ocultista e mágico, satânico de reputação a condizer, que apavorou os últimos anos do século XIX inglês.
"London in Terror", gritam os vespertinos da metrópole que aqui aparece nocturna e nevoenta como se impõe, carregada de “smog” e lixo, numa excelente reconstituição e uma fabulosa direcção artística. Espera-se, a cada momento, a aparição de “Jack, the Riper” numa das esquinas da vida, o que não deve demorar muito. Notáveis são ainda o guarda-roupa e a fotografia, tudo departamentos a concorrerem para nomeações a Oscars.
Com realização de Guy Ritchie, e argumento escrito por Michael Robert Johnson, Anthony Peckham, Simon Kinberg e Lionel Wigram, segundo personagens criadas por Sir Arthur Conan Doyle (e não adaptando directamente nenhum dos argumentos escritos originariamente pelo romancista), este novo “Sherlock Holmes” aparece associado a uma banda desenhada, criada por Lionel Wigram (que é também um dos produtores do filme). É interessante recordar esse episódio. Lionel Wigram, querendo experimentar as possibilidades de actualizar o mito Sherlock Holmes e de “vender” a ideia do filme e angariar fundos, resolve criar um argumento para um “comic” e, para tanto, contrata um desenhador, John Watkiss, com quem elabora a história e os seus contornos gráficos. Não se tratava tanto de um “comic-book”, mas simplesmente de um livro de esboços, uma espécie de “story board”, ilustrada a branco e preto.
Depois foi “só” arranjar oitenta milhões de dólares para cumprir o orçamento e avançar para a concretização do projecto, com o elenco de peso, Robert Downey, Jr., Jude Law, Rachel McAdams e Mark Strong. Guy Ritchie, muito conhecido nas revistas vips por ter sido o marido de Madona, merece também alguma notoriedade pela sua obra cinematográfica. “RocknRolla – A Quadrilha” (2008), tinha sido o seu último trabalho bem recebido, mas anteriormente assinara “The Hard Case” (1995), "Lock, Stock and Two Smoking Barrels" (Uma Mal Nunca Vem Só, 1998), “Snatch” (Porcos e Diamantes, 2000), “Star” (2001) “Swept Away” (2002), “Revolver” (2005), “Suspect” (2007, para TV), até chegar a “Sherlock Holmes” (2009). Anuncia-se a rodagem de “Gamekeeper” (ainda em 2010) e deverá estar para breve igualmente uma sequela de “Sherlock Holmes”, agora com a presença já vaticinada do seu velho rival do crime, James Moriarty.
Mas “Sherlock Holmes” assume-se na sua filmografia como obra de fôlego diverso, “blockbuster” natalício e, tudo aponta para isso, primeiro episódio de uma nova saga. O final do filme deixa em suspenso Lord Blackwood, possivelmente enforcado na Tower Bridge (mas quem se atreve a dar por terminada uma carreira numa obra deste teor?), mas deixa igualmente pendente o que virá depois, e que, se não nos enganamos muito, será a aparição plenipotenciária do famigerado Professor Moriarty. Para alguns duelos de peso.
Interessante será perceber a construção da obra e a “reconstrução” das personagens para permitir encaixá-las num moderno cenário de aventura, sem desvirtuar por completo a ligação umbilical a Conan Doyle. Há diferentes públicos a satisfazer, os adolescentes do século XXI, mas também os nostálgicos do século XIX. A solução poderia não agradar nem a gregos nem a troianos, mas o resultado não deslustra, tendo em conta vários factores, desde logo a boa prestação dos actores (sobretudo Robert Downey Jr., que nos oferece uma complexa e divertida versão do detective), mas igualmente a mescla de tons e de atitudes.
A escolha de uma toada de filme de aventuras que por vezes se auto-parodia é eficaz, equilibrada, sem descambar na paródia burlesca, nem na aventura extremada. Holmes é o pêndulo, mas Watson, afastando-se da atitude de observador quase sempre passivo e incrédulo das extraordinárias façanhas do “dono e senhor”, que irá depois relatar docilmente no papel, passa a elemento activo, fazendo parelha com o detective e salvando-o não raras vezes de algumas atrapalhações mais agudas. Não é um ser tão atordoado como nos é apresentado noutras versões cinematográficas, inicia o filme marcando mesmo a sua independência para com Holmes, apresentando-lhe a noiva com quem irá casar, o que implica a sua saída de 221B Baker Street, e ao longo da obra aceita ser protagonista de algumas cenas de pancadaria e não se exime de mandar o seu palpite, quase em igualdade de facto com o brilhante investigador. Interessante ainda é a aparição de Irene Adler (Rachel McAdams), a única mulher que parece ter impressionado vivamente Sherlock Holmes, ao longo da sua carreira, e que ele encontrou em “Um Escândalo na Boémia” (precisamente em 1891). A relação de Holmes com Irene apimenta as peripécias, introduzindo um curioso jogo de avanço e recuo, de traição e fidelização, que ameaça prolongar-se para futuras sequelas. Tanto mais que Irene Adler, atraída pelo fascínio do herói, não deixa de continuar ao serviço das forças do Mal. As mulheres são sempre uma ameaça para Holmes, ou fazem parte do exército das trevas, ou levam-lhe o melhor amigo… (2). Já Lestrade, o inspector da Scotland Yard (Eddie Marsan), passa pelos acontecimentos como um (quase) simples observador céptico, numa impressiva composição (pela neutralidade de expressão). Muito boa é a aparição desse Lord Blackwood, vindo das profundezas do inferno, uma figura realmente impressionante que congrega em si o horror do Mal. Bem coadjuvado por alguns latagões que ficam sempre bem num reparto desta grandeza.
Um grande filme? Um bom filme de aventuras, inteligente e divertido, talvez um pouco longo, a merecer desbaste aqui e ali, mas globalmente interessante, a colocar-se nitidamente na linha de partida para as nomeações dos Oscars que se avizinham.
(1) Holmes teve dezenas e dezenas de intérpretes, entre os quais Basil Rathbone, Jeremy Brett, Frank Langella, Peter Cushing, John Barrymore, James D'Arcy, Michael Caine, John Cleese, Peter Cook, Rupert Everett, William Gillette, Stewart Granger, Charlton Heston, Anthony Higgins, Raymond Massey, Roger Moore, John Neville, Leonard Nimoy, Christopher Plummer, Jonathan Pryce, Nicol Williamson e agora Robert Downey Jr..

(2) William Stuart Baring-Gould (1913–1967), um dos mais proeminentes estudiosos de Sherlock Holmes, ficou conhecido por uma exaustiva obra a que deu o nome de “Sherlock Holmes of Baker Street: A Life of the World's First Consulting Detective” 1962. Segundo a sua teoria, Holmes e Irene Adler foram amantes e teriam mesmo concebido um filho. Anos depois escreveria “Nero Wolfe of West Thirty-fifth Street: The Life and Times of America's Largest Private Detective”, uma biografia de Nero Wolfe, criação de Rex Stout, que William Stuart Baring-Gould considera filho da “pecaminosa” ligação de Sherlock Holmes e Irene Adler.

SHERLOCK HOLMES
Título original: Sherlock Holmes
Realização: Guy Ritchie (Inglaterra, EUA, Austrália, 2009); Argumento: Michael Robert Johnson, Anthony Peckham, Simon Kinberg, Lionel Wigram, segundo personagens criadas por Sir Arthur Conan Doyle; Produção: Bruce Berman, Steve Clark-Hall, Susan Downey, Peter Eskelsen, Dana Goldberg, Dan Lin, Joel Silver, Michael Tadross, Lionel Wigram; Música: Hans Zimmer; Fotografia (cor): Philippe Rousselot ; Montagem: James Herbert; Casting: Reg Poerscout-Edgerton; Design de produção: Sarah Greenwood; Direcção artística: James Foster, Nick Gottschalk, Matthew Gray; Niall Moroney; Decoração: Katie Spencer; Guarda-roupa: Jenny Beavan, Melissa Meister; Maquilhagem: Christine Blundell, Amy Byrne, Carol 'Ci Ci' Campbell, Charmaine Fuller; Direcção de Produção: Bill Draper, Ray Quinlan, Emma Zee; Assistentes de realização: Matthew Baker, Paul Bennett, Sarah Brand, Andrew Fiero, Clare Glass, Lee Grumett, Max Keene, Carley Lane, Andrew Mannion; Departamento de Arte: Joseph Alfieri, Andrew Bennett, Laura Dishington; Som: Michael Fentum; Efeitos especiais: James R. Bilz, Jeff Brink; Efeitos visuais: Hayley Easton, Chas Jarrett, Rob Shears, Sarah Louise Smith; Companhias de Produção: Lin Pictures, Silver Pictures, Translux, Village Roadshow Pictures, Wigram Productions; Intérpretes: Robert Downey Jr. (Sherlock Holmes), Jude Law (Dr. John Watson), Rachel McAdams (Irene Adler), Mark Strong (Lord Blackwood), Eddie Marsan (Inspector Lestrade), Robert Maillet (Dredger), Geraldine James (Mrs. Hudson), Kelly Reilly (Mary Morstan), William Houston (Constable Clark), Hans Matheson (Lord Coward), James Fox (Sir Thomas), William Hope, Clive Russell, Oran Gurel, David Garrick, Kylie Hutchinson, Andrew Brooke, Tom Watt, John Kearney, Sebastian Abineri, Jonathan Gabriel Robbins, James A. Stephens, Terry Taplin, Bronagh Gallagher, Ed Tolputt, Joe Egan, Jefferson Hall, Miles Jupp, Marn Davies, Andrew Greenough, Ned Dennehy, Martin Ewens, Amanda Grace Johnson, James Greene, David Emmings, Ben Cartwright, Chris Sunley, Michael Jenn, Timothy O'Hara, Guy Williams, Peter Miles, etc. Duração: 128 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner Filmes de Portugal; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 24 de Dezembro de 2009.

segunda-feira, janeiro 04, 2010

DOSSIER SHERLOCK HOLMES, 1

:
SHERLOCK HOLMES, A CRIAÇÃO LITERÁRIA


1. NA CASA DE SHERLOCK HOLMES
Diz a lenda (e as histórias literárias) que Sherlock Holmes é uma criação de Sir Arthur Conan Doyle, portanto alguém que nunca teve uma existência física palpável. Engano. “Eu” estive na casa de Sherlock Holmes, subi as escadas íngremes do número 221B, de Baker Street, em Londres, atravessei a sala onde Holmes permaneceu dias e noites embrenhado nos seus casos, dialogando com o amigo Watson. Fui conduzido pela voz mecânica e automatizada de uma guia que nos ia indicando cada um dos objectos de culto, criteriosamente dispersos pela divisão. O jornal que diariamente lia, a bengala, o cachimbo, o tabaco, o chapéu, o improvisado laboratório, o violino das horas mortas, o cadeirão onde se sentava, a “chaise longue” onde adormecia. Diversos disfarces. Espreitei a rua da janela do primeiro andar. Senti o arrepio de pressentir a chegada de um novo cliente, de uma tímida jovem que atravessava a rua, tocava sofregamente à porta, era atendida pela governanta e mandada subir por Holmes que, depois de um rápido olhar, enunciava desde logo ao que vinha, donde vinha, e como tinha sido a jornada. A casa estava agora desabitada, é certo, sentia-se o vazio, eu que gosto de visitar casas museus, conheço este incómodo decorrente de invadir uma privacidade, de espiolhar uma vida e tentar descobri-la pelos despojos onde se procura um pouco da alma de quem por lá passou. Mas também sei que a maioria dos móveis já não são os originais, que muito do que vemos não tem correspondência com o que foi, mas sim com o que pensamos que foi, com o que nos dizem que foi. O que vemos é mais o que a lenda impõe, do que a realidade do que realmente existiu. Por exemplo, onde está a cocaína que Holmes consumia regularmente? Todos sabem que por essa altura não era crime, era mesmo prática corrente e remédio aconselhado por médicos e psicanalistas (veja-se o caso de Freud). Mas sabemos também que familiares do defunto e curadores dos museus fazem por esquecer ou encobrir certas práticas menos consentâneas com a faixa etária que frequenta estas visitas guiadas a casas ilustres. Fica, portanto, um vazio indizível, que anuncia apenas uma presença que todos querem sentir. A esta casa já fui pelo menos duas vezes, uma quando era ainda solteiro, outra com um filho que se interessa igualmente por estas curiosidades (sim, também visitámos a Old Curiosity Shop). Há obsessões que passam de geração em geração. Baker Street é lugar de peregrinação inadiável para qualquer admirador de Sherlock Holmes de passagem por Londres. Ou mesmo para os muitos londrinos que não esquecem um dos seus símbolos maiores. É impossível que esta casa com um ar tão desabitado, não tenha já sido habitada. Desabitada quer dizer que se sente a falta de quem a habitou anteriormente. O vazio é o vazio de uma ausência. Esta invasão de privacidade só o é porque houve anteriormente uma privacidade. Sherlock Holmes esteve aqui, seguramente, a falar com John Watson. Até retenho alguns traços fisionómicos, com um pouco de Basil Rathbone, algo de Peter Cushing, muito de Jeremy Brent, também de Robert Stephens ou Nicol Williamson, agora até de Robert Downey Jr. É, pois, um retrato estranho, uma espécie de puzzle que combina na memória rostos e silhuetas diferentes, mas que todas elas asseguram a individualidade de um ser. Sherlock Holmes existiu mesmo.

2. UMA CRIAÇÃO DE CONAN DOYLE

Dizem os factos, para lá da lenda, que Sherlock Holmes é uma criação de Sir Arthur Conan Doyle, médico e escritor, que apareceu pela primeira vez no romance “A Study in Scarlet” (Um Estudo em Vermelho), publicado originalmente na revista “Beeton's Christmas Annual”, em Novembro de 1887. Holmes não teve biografia traçada desde início, mas foi amealhando currículo ao longo da série de novelas, contos e romances que se lhe seguiram. Curiosamente, sabe-se que não era para ser assim chamado, pois existem rascunhos de um outro nome para a personagem: Sherringford Holmes.
O que se sabe, desde logo, é que Sherlock Holmes viveu em Londres, entre os anos 1881 e 1903, portanto nos derradeiros anos do período vitoriano, num apartamento no nº 221B, de Baker Street (onde, presentemente, se encontra instalado um museu dedicado a Sherlock Holmes). Dividiu, durante largo tempo, esse apartamento com um amigo e colega médico, o Dr. John H. Watson, recém-chegado do Afeganistão. Essa amizade de convívio diário, transforma Watson num companheiro de aventuras e no biógrafo encartado de Holmes.
Conan Doyle admitiu que a inspiração para a criação desta figura que rapidamente se tornaria lendária, a foi buscar a um seu professor de medicina, o Dr. Joseph Bell (1837-1911), um cirurgião de Edimburgo, que tinha excelentes capacidades dedutivas e era capaz de descobrir imensos aspectos da vida e dos hábitos dos seus pacientes. O Dr. Joseph Bell terá inspirado não só a criação da personalidade, mas até alguns aspectos físicos da figura do detective. Num texto publicado no periódico “The National Weekly”, em 1923, Doyle recorda os tempos passados na faculdade de medicina, e como iniciou então o processo de criação da sua célebre personagem. Ao descrever o seu professor Bell, afirma: “Era magro, vigoroso, com rosto agudo, nariz aquilino, olhos cinzentos penetrantes, ombros reptos e um jeito sacudido de andar. A voz era esganiçada. Era um cirurgião muito capaz, mas o seu ponto forte era o diagnóstico, não só das doenças, mas das ocupações e da personalidade dos doentes." Dr. Joseph Bell parece ter negado ser a fonte inspirativa e tomou mesmo a comparação como pejorativa – não se considerava arrogante.
Sherlock Holmes descreve-se a si mesmo como um "detective consultor". Diz: “Tenho um ofício próprio. Suponho que sou o único no mundo. Sou um detective consultor”. Não tinha realmente muita simpatia pelos detectives particulares que iam à procura de casos e clientes. Pode considerar-se um certo pretensiosismo da sua parte, uma jactância social. Não fazia parte da sua índole descer tão baixo. Não precisava. Não ia à procura de casos, esperava que eles viessem ter a si. Esperava-os no seu salão de Baker Street, folheando jornais, fumando tabaco em cachimbo ou drogando-se com cocaína (esta só seria proibida em 1930). Tocava violino ou aborrecia-se de morte em tempos de ociosidade. Era capaz de trabalhar dias e noites, sem comer nem dormir, quando se encontrava envolvido nalgum caso mais melindroso. Bastava, como nos conta Conan Doyle, recuperando os cadernos de apontamentos de Watson, ver entrar pela porta dentro uma mulher em desespero ou um homem em perigo de morte e olhar-lhe para os sapatos, a cor dos olhos, as manchas do casaco, o vestido amarrotado, para desatar a enumerar um infindável número de “evidências” que deixavam atónitos todos os circundantes. Doyle assegura que Holmes é capaz de resolver os mais complexos problemas sem sair do seu apartamento. Mas muitas vezes desloca-se ao local do crime, e não poucas vezes vê-se envolvido em episódios violentos.
Em todos os casos, a dedução é a base da sua estratégia alicerçada numa forte faculdade de observação dos mais pequenos sintomas ou pormenores. Senhor de uma vastíssima cultura geral, sobretudo científica, que é conveniente não indagar de onde lhe vem (certamente de dezenas de anos de estudo), Holmes identifica um aroma, um perfume, um cheiro, a marca de um tabaco, os vestígios de umas cinzas, a origem de um pedaço de terra, a textura de um pó. Estudou química e física, além de medicina, e não raro faz experiências, nem todas bem sucedidas. Mas no final acabarão por se tornar especialmente úteis. De vez em quando desaparece no nevoeiro londrino para reaparecer não se sabe como, disfarçado das mais diversas formas, para levar a bom porto as suas investigações, que, não raro, exigem dele o manejo da espada, ou mesmo umas boas cenas de pugilismo (Watson assevera mesmo que teria dado um bom pugilista profissional). Essa sua faceta de actor que lhe permitia o disfarce exemplar colheu-a certamente durante alguns meses como intérprete, na sua juventude, chegando a integrar o elenco de peças como “Hamlet”. Entre os disfarces mais conhecidos e relatados por Watson, contam-se alguns vagabundos, um velho bibliógrafo, um venerável padre italiano, uma velha senhora, um marinheiro, o capitão Basil, muito conhecido no East End, um fumador de ópio, um canalizador libertino de nome Escott, um operário francês mal barbeado, um espião irlando-americano, um oficial de marinha asmático, um clérigo não conformista, simplório e amável, um criado de quarto, dado à bebida, etc.
3. UMA CRONOLOGIA
Sherlock Holmes não teve existência física, nasceu da pena de um inspirado escritor, mas ao longo das suas aventuras pode inventariar-se uma história passada: terá nascido a 6 de Janeiro de 1854, ao norte de Yorshire, filho de um agricultor e de uma mãe de origem francesa, dado que a avó era filha do pintor Horace Vernet. É o próprio detective quem confidencia a Watson: “Os meus antepassados eram fidalgos de província que parecem ter levado o tipo de vida próprio de pessoas da sua classe social.”
6 de Janeiro de 1854? Obviamente que esta data de nascimento é calculada, com base em referências surgidas em obras que relatam as suas aventuras, pois não há nenhuma menção precisa. Entre 1852 e 1867 várias foram as hipóteses aventadas, mas a que reúne maior consenso é a de 1854. No conto “O Mistério do Vale Boscombe”, que se desenrola em Junho de 1889, Holmes descreve-se como um homem de "meia-idade”, o que na altura quereria dizer de cerca de 35 anos. Em “His Last Bow“, de 1914, Watson descreve Holmes como alguém de sessenta anos. Ambas as referências apontam para 1854.
Quanto ao dia e ao mês, as divagações não são menores. Em “O Vale do Terror”, há uma referência a um dia 7 de Janeiro, e Watson pergunta-se se o amigo terá festejado o seu aniversário na véspera. Logo, “elementar, meu caro Watson”... (frase que Conan Doyle nunca terá escrito!). Elementar? Nada disso. Nick Rennison, na sua recente “biografia não autorizada”, “Sherlock Holmes”, opta por uma outra data, 27 de Junho de 1854, para o nascimento de William Sherlock Holmes (1).
Tinha um irmão mais velho, Mycroft, que trabalhava para o serviço secreto inglês. É Holmes quem afirma que o irmão é muito superior a si em observação e dedução. Numa das suas aventuras, Holmes encontra-se com Mycroft, em frente do Diogenes Club, o clube onde o irmão passava os tempos livres, e os dois mantêm um diálogo repleto de deduções, cada uma mais bizarra que a outra, sobre um transeunte que se atravessa no seu caminho, conjecturas que deixam Watson profundamente intrigado e estupefacto.
Segundo o “Canon” de Sherlock Holmes (isto é, a globalidade das obras escritas realmente por Conan Doyle, excluindo todas as sequelas e derivações posteriores, assinadas por outros autores, que se inspiraram nas personagens e lhe deram continuação, e foram algumas), é possível estabelecer alguma cronologia para a vida do popular detective. Assim, por exemplo, dando crédito a uma cronologia estabelecida por Thierry Saint-Joanis (2), em 1877, Holmes instala-se como detective privado; em 1878, Watson obtém o seu diploma de médico na universidade de Londres, torna-se cirurgião e é incorporado no 5º Regimento de Fuzileiros de Northumberland; em 27 de Julho de 1880, inicia-se a segunda guerra do Afeganistão, Watson participa na batalha de Maïwand onde é ferido. Convalescença e regresso a Inglaterra com uma curta pensão.
Em 1881, um amigo comum apresenta Holmes a Watson e os dois decidem partilhar o aluguer de um apartamento em Baker Street, em Londres. “Um Estudo em Vermelho” é o primeiro caso que ambos resolvem. Seis anos mais tarde, em 1887, Watson vem em socorro do seu amigo, gravemente doente, em Lyon, durante o caso dos proprietários de Reigate. Voltam para Londres, onde os espera o caso do “Signo dos Quatro”, durante o qual Watson encontra Mary Morstan, com quem irá casar.
Em 1889, Holmes afirma ter completado mais de quinhentos inquéritos importantes desde o início da sua carreira. Em 1891, duplica. No dia 4 de Maio desse mesmo ano, Sherlock Holmes desaparece nas cataratas de Reichenbach, perto de Meiringen, na Suíça (episódio relatado em “The Adventure of the Final Problem”), quando lutava corpo a corpo com o professor James Moriarty, arqui-rival e génio do crime. Para os leitores é dado como morto.
Este período, entre 1891 a 1893, compreendido entre a "morte" e a "ressurreição" do detective, é conhecido pelos sherlockianos como o grande hiato (The Great Hiatus). Curiosamente, "O caso da Vila Glicínia" (The Adventure of Wisteria Lodge) é datado pelo Dr. Watson como ocorrido no ano de 1892. Sabe-se depois que, nesse grande hiato, o detective viaja incógnito pelo Tibete e a Pérsia, visita a Meca, espia em Cartum para o Foreign Office, depois regressa por Montpellier, onde faz pesquisas. Durante este período, em Londres, Watson, que acredita que o amigo morreu na Suíça, perde também a sua jovem e muito amada mulher.
Interessante aprofundar as razões do desaparecimento do detective. Arthur Conan Doyle quis realmente fazer desaparecer a sua personagem, interessado em explorar outros temas, aspirando a mudanças na sua obra literária. Julgava “The Adventure of the Final Problem” um final apropriado para o seu famoso detective que, finalmente, encontrava e vencia, ainda que à custa da própria vida, um adversário à altura, Moriarty.
Durante dez anos, Doyle volta-se para outras paisagens e outros personagens, e não se entrega a Sherlock Holmes a não ser em 1902, quando redige “O Cão dos Baskerville”, para satisfazer as imperiosas necessidades do seu público. Mas este não se sacia e quer mais. Os editores também querem e, em 1903, perante uma oferta irrecusável de direitos autorais, retorna com “O Regresso de Sherlock Holmes”. Holmes retoma oficialmente o seu trabalho com o “Caso da Casa Vazia”, onde captura o coronel Moran, último membro da organização de Moriarty. A República Francesa agracia-o com a Legião de Honra por ter preso Huret, o “assassino do boulevard”. Em 1895, será a Rainha Vitória a recompensá-lo com uma esmerada incrustada num alfinete de gravata pelo seu triunfo em “Os Planos do Submarino Bruce-Partington”.
Em 1897, para evitar a depressão, repousa. Confia a Watson que nunca amou, o que arruma assim sumariamente a sua questão com as mulheres (a única por quem terá sentido alguma atracção terá sido Irene Adler). Em Junho de 1902 recusa o título de Cavaleiro que o Rei lhe procura atribuir. No ano seguinte, Watson casa pela segunda vez e retoma a sua actividade de médico. A 6 de Janeiro de 1904, Holmes reforma-se e retira-se para uma herdade em Sussex, onde passa a dedicar-se à apicultura. Escreve mesmo um ensaio sobre o tema.
A 2 de Agosto de 1914, depois de dois anos de espionagem nos EUA, na Irlanda e em Inglaterra, Holmes reencontra Watson para prenderem um agente alemão, no início da Primeira Guerra Mundial. A seguir o mundo não voltará a ouvir falar de Sherlock Holmes e de John Watson. Esta foi a sua derradeira aventura.
Sherlock Holmes é portador de uma personalidade singular e perturbante, que faz dele certamente um ícone. Aparentemente sem defeitos e com enormes virtudes, culto e sabedor, mesmo erudito, é todavia arrogante, convencido e pretensioso, não raro de uma inteligência fria, optando quase sempre por ser racional em lugar de emocional. Faz justiça pelas próprias mãos, no que se julga deus, deixa em liberdade alguns criminosos, executa outros, ironiza com as poucas faculdades do inspector Lestrade, da Scotland Yard, que deixa sempre para trás e em dificuldades de raciocínio. Não é muito dado a práticas violentas, mas foi sensação no boxe, e alguns asseguravam-lhe um bom futuro na profissão, assim como, paradoxalmente, poderia ter sido um exímio executante musical, o que recorda amiúde com o seu violino.


4. AS OBRAS DE SIR ARTHUR CONAN DOYLE
As obras de Sir Arthur Conan Doyle, dedicadas a Sherlock Holmes são:
Um Estudo em Vermelho (A Study in Scarlet), romance (1887),
O Signo dos Quatro (The Sign of the Four), romance (1890)
O Cão dos Baskervilles (The Hound of the Baskervilles), romance (1902)
O Vale do Terror (The Valley of Fear), romance (1915)
E ainda:
As Aventuras de Sherlock Holmes (The Adventures of Sherlock Holmes), série de 12 contos (1892)
Memórias de Sherlock Holmes (The Memoirs of Sherlock Holmes), série de 11 contos (1894)
O Regresso de Sherlock Holmes (The Return of Sherlock Holmes), série de 13 contos (1905)
O Último Adeus de Sherlock Holmes (His Last Bow), série de 8 contos (1917)
Os Casos de Sherlock Holmes (The Case-Book of Sherlock Holmes), série de 12 contos (1927)
Mas Conan Doyle dedicou-se ainda como escritor a muitas outras áreas. Temos, por exemplo, a série dedicada ao Professor Challenger, com alguns romances:
O Mundo Perdido (The Lost World) (1912)
A Cintura de Veneno (The Poison Belt) (1913)
A Terra das Brumas (The Land of Mist) (1926)
Quando o Mundo Gritou (When the World Screamed) (1928)
A Máquina de Desintegração (The Disintegration Machine) (1929)

Outros romances:
Micah Clarke (Micah Clarke) (1888)
A Companhia Branca (The White Company) (1891)
Os Refugiados – Uma História de Dois Continentes (The Refugees – A Tale of two Continents)
Sir Nigel (1906)
J. Habakuk Jephson's Statement (1884)
The Mystery of Cloomber (1889)
The Firm of Girdlestone (1890)
The Parasite (1894)
Rodney Stone (1896)
The Exploits of Brigadier Gerard (1903)
The Maracot Deep (1929)
Nota: As obras de Arthur Conan Doyle estão editadas em português por diversas editoras, Publicações Europa-América, Livros do Brasil, mais recentemente, em 2009, pela Global Noticias (Colecção Sherlock Holmes, em 12 caprichados pequenos volumes).

5. SIDNEY PAGET E FREDERICK DORR STEELE
Quase todas as histórias de Sherlock Holmes apareceram inicialmente publicadas na mais importante revista literária inglesa dessa época, a “The Strand Magazine”. A capa era quase sempre ocupada por uma ilustração relativa a uma história com a assinatura de Conan Doyle e, no interior, surgiam pequenas ilustração quase sempre da autoria de Sidney Paget, que assim deu corpo e forma às personagens de Sherlock Holmes e Watson, moldando-as para sempre no imaginário colectivo. Sidney Paget, que começou a desenhar muito cedo, estudou no British Museum durante dois anos, e depois na Heatherley's School of Art, e na Royal Academy Schools, era o irmão do meio de uma talentosa ninhada de três, o mais famoso dos quais, Walter Paget, era igualmente ilustrador. Diz a lenda que era para este que deveria ter sido endereçado o convite para ilustrar "Adventures of Sherlock Holmes", mas a carta foi cair nas mãos de Sidney que aproveitou a oportunidade que não mais largou. Segundo a lenda teria sido o irmão Walter a servir de modelo para a figura de Sherlock Holmes, mas nada se sabe de certo. Os estudiosos atribuem a Sidney Paget a invenção do chapéu de caçador de veados (dito “Deerstalker” e mais tarde conhecido como chapéu de detective por associação com Sherlock Holmes) e a capa de inverno, elementos que não são referidos nos textos de Conana Doyle. Quando Sidney morreu, depois de ter desenhado 356 ilustrações para Sherlock Holmes, Walter Paget ilustrou finalmente uma história.
Entretanto, na América, as aventuras de Conan Doyle começaram igualmente a ser publicadas na “Collier's Weekly”, a partir de 1903, sendo ilustradas por Frederic Dorr Steele. Descendente de William Bradford, Frederic era natural do Michigan, estudou na National Academy of Design e depois em New York City, tornando-se um ds desenhadores do The Illustrated American, passando depois a “freelance”, tanto na “Scribner's Magazine” como na “Collier's Weekly”, onde foi convidado a ilustara “The Return of Sherlock Holmes”. Para Frederic Dorr Steele, o modelo que escolheu para Sherock Holmes foi colhê-lo a William Gillette, actor. Parece ter sido Frederic a criar a dependência do cachimbo, baseano-se precisamente na criação teatral de Gillete.
O excelente Frederic Dorr Steele, muito mais moderno e cosmopolita que Sidney Paget, e que utilizava uma leve coloração nas suas obras (ao contrário de Sidney Paget que preferia o preto e branco nuanceado), trabalhou ainda no “The Century Magazine”, “McClure's”, “The American Magazine”, “Metropolitan Magazine”, “Woman’s Home Companion” e “Everybody’s Magazine”.
Estas ilustrações de Sidney Paget e Frederic Dorr Steele tornaram-se raridades vendidas e compradas em leilões a preços invulgares. O original de Paget que captou e imortalizou a luta de Holmes e Moriarty nas cataratas de Reichenbach foi vendido, num leilão da Sotheby, em Nova Iorque, por 220.000 dólares, em 16 de Novembro de 2004.