Estamos na América, mas poderíamos estar “no mundo”. Há um homem e uma criança, pai e filho, a percorrer estradas, rumo ao Sul. Mas não há um homem e uma criança apenas. Esse homem e essa criança são mais do que um homem e uma criança. Se fossem só isso, teriam nomes. Mas não os ostentam. São “o” Homem, “a” Criança. Símbolos exemplares de uma parte da Humanidade. De uma Humanidade que colapsou sabe-se lá porquê e como e quando. Estamos num planeta destruído, onde ainda se vão verificando réplicas de tremores de terra que transformam o solo que pisamos num mar agitado. Conflito natural, ou bomba nuclear? Terramoto ou atentado? O que se sabe é que a Terra é um lugar perigoso, muito perigoso, infestado por homens maus, que um homem e uma criança bons procuram evitar, e “chegar ao Sul”. O que divide os “good guys” dos “bad guys”, se todos eles têm fome e frio, vivem ao abandono e sobrevivem vegetando? Uns são canibais e os outros não, teimam em não se alimentarem de carne humana. Uns e outros vão morrer. Alguns suicidam-se para não enfrentar o dilema, a escolha. Os que ficam ou resistem na sua humanidade ou prevaricam na sua desumanidade. Restos humanos são encontrados aqui e ali, caveiras espetadas em estacas ornamentam jardins secos de vida, crianças servem-se grelhadas como pitéus apetecíveis, há mesmo dispensas de carne viva, caves que mais parecem galinheiros onde, à falta de galináceos, se guardam pessoas para serem comidas mais tarde. Quando chegar o momento e o frio do inverno apertar. Neste mundo, as árvores erguem-se mortas ou caem ruidosamente sobre a terra. Secas. Exaustas. As cidades estão desertas, ou quase, pois se pode adivinhar a cada esquina um caçador faminto em busca do que quer que seja que o alimente por mais uns dias, ou de um par de sapatos para os pés em chaga, ou de um cobertor para o proteger do ar gélido e da neve que cai. As estradas estendem-se sem fim na desolação do vazio ou da destruição mais completa e seriam terreno fácil de calcorrear, mesmo puxando um carrinho de supermercado, com os únicos haveres possíveis de transportar, se não existisse por todo o lado o perigo do “ outro homem”, da ameaça latente nos olhos com que se confrontam. Uma ameaça que pode vir de um camião em lento andamento rodeado por predadores esfomeados, ou de um ladrão fortuito, ou de uma família de canibais, ou do simples medo que se interioriza até também ele corroer os ossos.
Como se terá chegado aqui, a este extremo?
(Sem sequer o imaginar, Cormac McCarthy na escrita, e depois o realizador australiano John Hillcoat no cinema, antecipavam imagens e sentimentos que se projectam de Port-au-Prince, no Haiti).
“Nós somos os bons, nós não comemos pessoas, pois não?”, pergunta o filho ao pai, para se certificar pela milionésima vez de que são diferentes. O pai responde sempre que não, e vai afirmando que tudo está bem, que hão-se chegar ao Sul, à terra das “pessoas boas”. Curiosa regressão, ou inversão, no ideário americano, habituado a ir para Oeste, em busca de novas fronteiras, e para Norte, para a industrialização e o progresso. Terá sido a ideia de novas fronteiras e a sugestão de progresso que conduziram o mundo ao apocalipse? Será a descida para Sul, para o mar (“desculpa, não é azul, como te tinha prometido”, justifica-se o pai), o regresso ao passado rural e mais de acordo com a harmonia do homem com a natureza?
Um pai e um filho, numa paisagem inóspita, num mundo atroz, numa terra que escorre sangue, num território sem lei (recordando o farwest dos filmes de cowboys, onde as armas impunham a lei, tal como aqui, só sobrevive quem tem uma arma), caminham para Sul. São sobreviventes de algo de catastrófico, de um terror imenso que paira sobre a América do pós-11 de Setembro. Caminham com base num velho mapa, sem outras coordenadas que não seja a intuição. Palmilham quilómetros sem outra convicção que não seja uma esperança absurda numa remota hipótese de que nem toda a humanidade tenha desaparecido no coração dos homens. As areias das praias de Leste e o prometido aroma das terras do Sul são o destino.
"Naqueles primeiros anos, as estradas estavam cheias de refugiados amortalhados nas suas roupas. Usavam máscaras e óculos de protecção, sentados na berma com os seus andrajos no corpo, quais aviadores reduzidos à indigência. Traziam carrinhos de mão a abarrotar de bugigangas, puxavam carroças ou reboques. De olhos a brilhar no crânio. Carapaças de homens sem uma réstia de fé aos tropeções pelos viadutos, como bandos migratórios numa terra febril. A fragilidade das coisas enfim revelada." (in “The Road”).
Esta a obra de Cormac McCarthy, escrita numa linguagem descarnada e despida de ornamentos, tão seca e inóspita quanto a paisagem que descreve e os sentimentos que retrata. Uma escrita de que já se conhecia a rudeza e a limpidez de outras obras, mas que não deixa de surpreender pela secura. Um grande romance que valeu, em 2007, o Prémio Pulitzer ao seu autor, o escritor de que um outro romance já servira de base ao fabuloso filme dos irmãos Cohen, “Este País não é para Velhos” (“No Country for Old Men”).
O introspectivo e solitário Cormac McCarthy, avesso a entrevistas e aparições públicas, é, hoje em dia, considerado um dos grandes da moderna literatura norte-americana, colocado apenas ao lado de Philip Roth, Don DeLillo e Thomas Pynchon (foi o crítico literário Harold Bloom quem o afirmou). A sua carreira já conta com mais de quarenta anos, ao longo dos quais publicou dez romances, alguns editados em Portugal, “O Guarda do Pomar” (The Orchard Keeper, 1965), “Filho de Deus” (Child of God, 1974), “Belos Cavalos” (All the Pretty Horses, 1992), “Meridiano de Sangue” (Blood Meridian, or the Evening Redness in the West, 1985), “Este País Não é Para Velhos” (No Country for Old Men, 2005), “A Estrada” (The Road, 2006) e “Suttree” (1979). Os outros são “Outer Dark” (1968), The Crossing” (1994) e “Cities of the Plain (1998), além de duas peças de teatro, “Sunset Limited”, “The Stonemason” (1995). Não há complacências neste olhar angustiado e algo desesperado sobre o futuro do homem, mas a posição metafísica e a mitologia religiosa do autor nunca deixam de acenar na perspectiva de uma regeneração do Homem, de uma qualquer esperança, que até pode ser o nome de um barco encalhado junto à costa.
Cormac McCarthy não é novo no cinema, ainda que o seu universo só muito recentemente tenha começado a interessar a indústria cinematográfica. Diga-se que os seus romances não são o que normalmente se adapta bem a rentáveis produtos audiovisuais e nem a sua intransigência de trato se presta muito a compromissos. Mas já escrevera um argumento original para televisão, para um episódio da série "Visions" (1977), que tinha como título “The Gardener's Son”, dirigido por Richard Pearce. Depois, em 2000, Billy Bob Thornton adaptara a cinema “All the Pretty Horses” ("Espírito Selvagem"), antes dos Cohen o tornarem célebre com a sua magnífica versão de “Este País não é para Velhos” ("No Country for Old Men", 2007). Há ainda a referir uma curta-metragem de Stephen Imwalle, retirada de “Outer Dark”, em 2009. Agora “A Estrada” (2009) e já se anunciam “Blood Meridian” (2011), uma realização e adaptação de Todd Field, o mesmo que nos dera em 2006, “Pecados Íntimos”, "Little Children", e ainda uma versão de “Cities of the Plain”, escrita e dirigida por Andrew Dominik (o realizador de “O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford” (2007)), e prevista para 2012. Finalmente, “The Sunset Limited” está a ser adaptado a televisão, por Tommy Lee Jones (2010). Tarde descoberto, mas depressa recuperado pela indústria, pode dizer-se.
Se “Este País não é para Velhos” era uma obra notável, recriando sabiamente personagens situações e clima de Cormac McCarthy, “A Estrada” não andará longe, dado que recupera com grande fidelidade o espírito do romance, recriando-o numa atmosfera demencial de destruição e solidão, com excelente direcção artística, uma óptima escolha de locais de filmagem (na Pensilvânia, em redor do lago Erié e em zonas mineiras, na Louisiania batida pelo furacão Katrina, e ainda no Oregon), uma fotografia densa e dramática, e um envolvimento sonoro que, mesmo para um admirador de Nick Cave, se tenha mostrado um pouco excessiva, mas, como sempre, de grande qualidade.
John Hillcoat é australiano (nasceu em 1961, em Queensland), onde iniciou a carreira de argumentista e realizador. Documentários e vídeo clipes (1) foram a base da sua filmografia inicial, com uma colaboração íntima com Nick Cave que se estende até hoje (“The Road” tem banda sonora assinada por ele). Os seus filmes foram “Ghosts... of the Civil Dead” (1988), “To Have & to Hold” (1996), “Nick Cave and the Bad Seeds: Babe, I'm on Fire” (2003), “The Proposition” (2005), único conhecido do público português, com o título “Escolha Mortal”, e agora “A Estrada” (2009).
Para interpretar as duas figures centrais, sobre as quais repousa toda a duração do filme, Hillcoat escolheu dois actores excelentes, o rigoroso Viggo Mortensen, que se auto domina de filme para filme com um brilhantismo inexcedível, e o jovem Kodi Smit-McPhee, surpreendente na sua contribuição. Em pequenos papéis, Charlize Theron consegue emocionar em duas ou três cenas, Robert Duvall é precioso de concisão e Guy Pearce, a imagem requerida da esperança na continuação dos “homens bons”.
O filme não é pêra doce de consumo fácil, amarga na recordação de quem o vê, mas é um impressionante sintoma de uma época de mau estar que urge não perder de vista. Sob pena de um dia nos encontrarmos todos nessa mesma “estrada” sem fim.
(1) Videos: Siouxsie and the Banshees – “Stargazer” (1995), Manic Street Preachers – “Australia” (1996), Bush – “Personal Holloway” (1997), Placebo - "You don't care about us"(1998), “Therapy? - Church of Noise” (1998), “Therapy? - Lonely, Cryin' Only” (1998), Depeche Mode – “I Feel Loved” (2001), “Freelove” (2001) e “Goodnight Lovers” (2002). “Gemma Hayes - Hanging Around” (2002), “Nick Cave and the Bad Seeds - Babe I'm On Fire” (2003), AFI - "Silver and Cold" (2003). Documentários: “The INXS: Swing and Other Stories” (1985), “Alleys and Motorways” (1997) – “Documentary of the band Bush e Digital Hardcore Videos (2001).
A ESTRADA
Título original: The Road
Realização: John Hillcoat (EUA, 2009); Argumento: Joe Penhall, segundoo romance de Cormac McCarthy; Produção: Paula Mae Schwartz, Steve Schwartz, Nick Wechsler, Marc Butan, Mark Cuban, Erik Hodge, Rudd Simmons, Todd Wagner; Música: Nick Cave, Warren Ellis; Fotografia (cor): Javier Aguirresarobe; Montagem: Jon Gregory; Casting: Francine Maisler; Design de produção: Chris Kennedy; Direção artística: Gershon Ginsburg; Cenário: Robert Greenfield; Guarda-roupa: Margot Wilson; Maquilhagem: Mandi Crane, Rocky Faulkner, Toni G, Deborah Patino, Yoichi Art Sakamoto, Jennifer Santiago, Geordie Sheffer; Director de produção: Buddy Enright, Michelle Krumm, Jamey Pryde; Assistente de realização: Vernon Davidson, Ryan Krayser, John Nelson, Karen Radzikowski; Departamento de Arte: Edgar Um Bucholtz, Robert Greenfield III, Charles Miller, Mary O'Brien, Joseph Waterkotte; Som: Leslie Shatz; Efeitos Especiais: David Fletcher, Ken Gorrell, Thomas Kittle; Efeitos visuais: Joseph DiValerio, Mark O. Forker, John Karner, Adica Manis, Eric J. Robertson, Robert Stromberg; Companhias de Produção: Dimension Films, 2929 Productions, Nick Wechsler Productions, Chockstone Pictures, Road Rebel; Intérpretes: Viggo Mortensen (Homem), Kodi Smit-McPhee (Rapaz), Robert Duvall (Velho), Guy Pearce (Veterano), Molly Parker (Mãe), Michael K. Williams (Ladrão), Garret Dillahunt (Membro de Gang), Charlize Theron (Mulher), Bob Jennings, Agnes Herrmann, Buddy Sosthand, Kirk Brown, Jack Erdie, David August Lindauer, Gina Preciado, Mary Rawson, Jeremy Ambler, Chaz Moneypenny, Kacey Byrne-Houser, Brenna Roth, Jarrod DiGiorgi, Mark Tierno, Nick Pasqual, etc. Duração: 111 minutos; Classificação etária: M/ 16 anos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Estreia em Portugal: 7 Janeiro 2010.