Blog belíssimo, muito cinematográfico na sua inspiração, muito literário na sua concepção, muito erótico na sua textura. "Um Amor Atrevido", é o nome. Quem o escreve não sei, mas gostava bastante de saber (as coisas boas são para se conhecerem, e o autor/autora atrevido/a bem merece a celebridade). Acontece que graficamente é de uma austeridade notável, de um rigor imaculado (nada desvia o autor/a dos seus propósitos), os textos são muito bonitos, alguns muito sensuais, e por todos passa uma sombra cinéfila que só fica bem, quer perla justeza das referências, quer pela subtileza das mesmas. Não percam.
Eis quatro exemplos “quentes” deste Agosto:
Domingo, Agosto 27, 2006
Já era tempo. O Amor não é como nos filmes, não se alimenta de ausências nem sobrevive do pingue pongue de toques inventados por imaginações carentes de adêene desconhecido. O Amor não é um grande plano de olhos fechados e de bocas entreabertas, com um magnífico pôr-do-sol de permeio e um piano piroso de fundo. Já era tempo, sabes. O Amor é uma janela que se fecha devagar para que não te constipes, é guardares-me a última colher de mousse e partilharmos a escova de dentes e o tédio das segundas à noite; é o riso cúmplice no velório de um primo distante e o depilar-me com a gilete com que te barbeias. Não, seguramente, esta estúpida nostalgia de violinos que se dispersa pelas minhas veias saudosas como veneno de cobra, a cada vez que me lembro de seguir um roteiro de palavras que não me pertencem porque já me esqueceram. Já era tempo de não tentar seguir-te o trilho, de perder a esperança de te encontrar as pegadas, às voltas, de volta, na minha direcção. Já era tempo de abrir os olhos, de virar-te a cara e cerrar-te os lábios (e que a noite caísse por fim entre nós). Seguir em frente. Sim. Já era tempo de seguir em frente.
Domingo, Agosto 20, 2006
Gosto da imoralidade inquieta com que investes entre as minhas pernas e depois emerges dos teus trabalhos de língua como uma enguia cansada, para logo a seguir me prenderes com os pés as bochechas, tendo eu de te engolir inteiro antes que da minha cara faças banco desdobrável. Não te reges por quaisquer princípios quando me abres na tua trave como ginasta olímpica e rodas sobre mim, fazendo-me eixo fixo do teu gozo obsceno e arrogando-te a leveza de um ponteiro dos segundos. Não me deixas, sequer, espaço dentro da boca para poder passar o riso que sempre me invade quando nos vejo assim trocados, invertendo todos os códigos da importância dos carinhos: eu, a amar perdidamente um dedo do teu pé e tu, a namorares o meu tornozelo magro, que chupas como a última ostra. Mas do que eu mais gosto é quando um de nós se vira por fim no escuro, ambos ainda confusos, em busca de pontos de referência, do hálito cansado do outro. E do prazer de te esperar, cá em baixo, no fim da viagem, depois das curvas, das derrapagens, dos cruzamentos às cegas e inversões de marcha. O sexo é a melhor metáfora de nós: o sítio onde exageramos a vida e a esquecemos, enterrando a cabeça um no outro como avestruzes cobardes.
escrito por a. at 10:02 PM
Chegaste-me pelas costas e o teu sorriso miúdo a acertar em cheio as minhas omoplatas desprevenidas. Tempos depois, o sol num determinado ângulo, a ensombrar o pára arranca da brisa marinha. e pela bonomia estival irrompe a lembrança dos teus olhos gulosos, arredondando as minhas medidas e sufragando os meus gestos. Por entre línguas da sogra e gelados olá, reconstituo a tua boca de lamentos diabéticos com a precisão de um restauro de capela: recordo-a abandonada aos meus segredos de mulher fácil, oferecida como uma amostra grátis, e lá se me vão as certezas dianteiras e os traços contínuos, na leva da quadragésima sétima onda. Um ligeiro açoite da memória, e o teu cheiro a sobrepor-se à citronela na varanda e a intrometer-se na roda de amigos. Por entre as gargalhadas e as traças que esvoaçam no cheio da noite, faltas-me qualquer coisa, como se uma cadeira vazia em frente a um prato cheio, numa mesa posta. Finjo que tenho muito para te mostrar mas, na verdade, sou um livro em branco à espera que me preenchas com a caligrafia paciente de um monge copista, e assim talvez que da nossa história ainda surja uma iluminura (como as que dantes contavam dos desvarios feitos por Amor e da tolice de lhes chamarem milagres).
escrito por a. at 2:07 AM
Segunda-feira, Agosto 07, 2006
Não sei em que momento o teu tronco perfeito, alinhado por deuses gentis, passou de bênção sorridente a cruz às costas. Nem imagino o que te terei feito ao certo, para que me obrigues a carregar-te pela moínha dos anos como uma penitência azeda. Nós dois, de mãos dadas num paraíso de folheto, assimétricos como bainhas cosidas à mão, cedendo cada vez mais ao conforto morno da redundância e do silêncio. E os contornos molhados desta ilha em que resolvemos resolver-nos, acentuam ainda mais os rasgões da solidão sibilina na nossa carne triste. Não há oceano índico que nos enxagúe as mágoas, nem sol costureiro que nos vire os forros da alma magoada pelo avesso e no-la sacuda para o chão, a ver se sai o lixo e as sobras que não prestam. Em frente, um nativo de rosto gasto como as conversas em vão, toca música velha de namorados e sorri, ao teu gesto cuidadoso de casaco sobre os meus ombros arrepiados. Sabemos ambos (aliás, sabemos todos, até a senhora da agência) que o roteiro de um inclui o outro a diário, como visita guiada de turista enfadado. Mas eu duvido (sinceramente, duvido) que alguma vez volte a oferecer-te o meu corpo com o abandono dos crentes.