O TERCEIRO PASSO
“O Terceiro Passo” (The Prestige, no original), baseia-se num romance homónimo de Christopher Priest, que o realizador Christopher Nolan (e o irmão Jonathan Nolan) adaptaram ao cinema.
Esta é uma adaptação não muito convencional, alterando bastante a estrutura da obra donde parte e de que se afasta consideravelmente, sendo no entanto que o resultado final se nos afigura não só muito próximo das intenções do escritor, como também bastante inteligente e coerente em relação ao novo meio de expressão.
O romance de Christopher Priest inicia-se na actualidade (1995, data em que o livro é escrito, tendo conquistado vários prémios, entre eles o “James Tait Black Memorial Prize for Fiction”, 1995, e o “World Fantasy Award”, 1996), com uma personagem que desaparece totalmente no filme, Andrew Westley, jornalista que recebe do pai um embrulho com um manuscrito de um tal Alfred Borden, chamado “Métodos Secretos de Magia”. Vem a saber-se depois que o livro, escrito em 1901, fora enviado por Kate Angier, que queria estabelecer contacto com Andrew Westley para este a ajudar a tentar resolver um enigma que a atormentava: quem fora Alfred Borden e o seu rival, igualmente mágico, Rupert Angier (obviamente da família de Kate).
Grande parte do romance (que se estende ao longo de cinco capítulos de dimensão muito variável) passa-se na actualidade, com conversas entre Andrew Westley e Kate Angier. São, no entanto, os capítulos dedicados a Alfred Borden (a transcrição do seu livro) e a Rupert Angier (a transcrição do seu diário) que irão constituir a base da adaptação do romance ao cinema, dado que todo o filme se passa numa Londres vitoriana de fins do século XIX. Mas também aqui as coisas não resultam simples e lineares, pois se o filme parte dos diários de dois mágicos que mantém carreiras simultâneas e uma competição feroz pelo título de melhor mágico do mundo, as idas ao passado (os flashbacks) são constantes e a estrutura da obra é igualmente complexa e organizada em forma de puzzle que se vai reconstruindo à medida que a acção se desenrola.
O tema de toda a obra é, pois, este despique brutal entre dois mágicos que fizeram carreiras nos teatros londrinos no final do século XIX e nos primeiros anos de 1900 (mas também por toda a província inglesa e em palcos mundiais, sobretudo Robert Angier que atinge grande notoriedade na América do Norte). Mas se esse confronto é a base da estrutura narrativa, o “segredo” que os mágicos prometem cumprir ao longo das suas vidas é a obsessão que os guia até final. Robert Angier (Hugh Jackman) e Alfred Borden (Christian Bale) criam uma rivalidade só igual ao seu sucesso. Um episódio antigo (Borden introduz-se numa casa particular onde Angier se prepara para efectuar uma sessão de espiritismo, invocando a memória de uma mulher recentemente falecida, e acaba por estragar toda a montagem e magoar a mulher de Angier e sua assistente) está na base desta obsessão. Não lhes interessa somente terem os melhores “números”, os mais perfeitos, os mais admirados pelo público, como sobretudo terem um “número” melhor que o do rival, e fazer fracassar o competidor sempre que possível. Não acompanham a carreira um do outro à distância das notícias dos jornais ou das informações que terceiros fornecem. Não. Vão muito mais longe. Mascaram-se, disfarçam-se e aparecem nas sessões de cada um dispostos a servirem de ajuda “espontânea” e assim frustrarem as exibições, estragando efeitos, denunciando truques, atacando-se, ferindo-se, se possível matando-se. Esta insana rivalidade é o centro deste filme sobre homens obcecados pela destruição dos seus iguais. Uma rivalidade que, à força de tão explorada e alongada no tempo e no espaço, se transforma numa metáfora que julgo ir muito além dos indivíduos em causa e se poder ler a nível planetário, rivalidade entre países, entre religiões, entre culturas. O filme de Christopher Nolan mostra-nos como a obsessão do poder nos pode levar à destruição do “outro”, mas também de nós próprios, funcionando como loucura desmedida. Irracional. Incontrolável.
A obra de Nolan, servindo-se da leitura dos dois diários e intercalando-os, acaba por dar a palavra a ambos os contendores, oferecendo dos dois a leitura parcial desta disputa que se torna particularmente rica para o espectador, obrigando-o a tomar partido ou, no mínimo, a “ouvir” ambos os lados e a construir a sua própria interpretação. Na realidade, o público confronta-se com mais um truque dos dois mágicos, com pontos de vista diferentes e contraditórios, e cada um deles, escondendo o seu “segredo”, procura expor o “segredo” do adversário. Enganando assim o espectador, tal como o faziam durante as suas actuações.
Depois de “Memento”, “Insónia”, “Batman Begins” ou “Amnésia”, com “O Terceiro Passo”, Christopher Nolan mantém-se fiel a um universo muito próprio, onde o tempo real e o tempo ficcional ocupam lugares destacados, onde a obsessão se torna uma presença viva, onde o caminho de alguém até ao fim em vista se torna um trajecto inadiável que se tem de cumprir quaisquer que sejam os perigos e os sacrifícios. Em “O Terceiro Passo” há momentos em que tanto Angier como Borden parecem querer pôr termo a esta louca corrida para o suicídio, a imporem umas tréguas a esta viagem para o abismo, mas ambos se sentem como que manietados por um destino que os não liberta dessa corrida para a fatalidade. Uma impulsividade irracional para a destruição. Muitas vezes o sucesso obriga-os caprichosamente a ouvirem os aplausos escondidos por detrás do pano de boca do teatro. O sucesso é seu, mas é o duplo que o recebe em palco (ainda que, no silêncio do seu recolhimento, o mágico os possa sentir e agradecer).
No calor do número mais desejado, “O Homem Transportado” ou “Num Relâmpago”, a ambiguidade atinge o seu ponto mais alto. Este é obviamente um filme sobre o “Eu” e o meu “Duplo”. Angier e Borden são duplos um do outro, cada um tem o seu número de “Duplo”, existem sósias e gémeos, mulheres que ambos amam, e que trocam entre si, homens que se reproduzem até ao infinito (quando um aparece, outro é morto, quem é quem afinal, quem sobrevive?) e, no final, bem se pode falar de uma obra sobre a identidade. Afinal quem é quem neste filme onde ninguém é quem aparenta ser.
A mulher de Borden pergunta-lhe: “Amas-me?” Ao que ele responde, com sinceridade: “Uns dias sim, outros dias não.” Nada mais certo, tanto mais que, nuns dias é ele, noutros o seu duplo, o que faz com que não se chegue a saber também afinal quem se deita com quem, quem é o pai, quem é o amante ou o esposo amantíssimo. Ambos pretendem possuir o poder total, ambos olham o rival como aquele que o impede de ser “único”. Enquanto um se serve de (chamemos-lhes) sósias (Borden e o misterioso engenheiro Fallon), outro, Angier, cria clones de si próprio, através da colaboração com Tesla. Mas Angier tem ainda outro segredo a resguardar. Ele “sempre foi igualmente Lorde Caldlow”, o que encobre, primeiro para não envolver a família na sua vida pouco ortodoxa, mas depois para não misturara estatutos.
Curiosamente, o filme reflecte ainda uma outra rivalidade, também em forma de duplicidade, esta histórica, a que existiu entre Thomas Edison e Nikola Tesla (David Bowie, numa composição brilhante), com disputas científicas e comerciais que ficaram lendárias, com base na invenção e na melhor utilização da electricidade.
Excelente filme, magníficos actores (para lá dos já citados há ainda Michael Caine (Cutter) e Scarlett Johansson (Olivia Wenscombe), entre muitos outros), uma notável fotografia e brilhante direcção artística.
O TERCEIRO PASSO
Título original: The Prestige
Realização: Christopher Nolan (Inglaterra, EUA, 2006); Argumento: Jonathan Nolan e Christopher Nolan, segundo romance de Christopher Priest (com colaboração de Steve Gehrke, Peter Madamba, Rebecca Edelson); Música: David Julyan; Fotografia (cor): Wally Pfister; Montagem: Lee Smith; Casting: John Papsidera; Design de produção: Nathan Crowley; Direcção artística: Kevin Kavanaugh; Decoração: Julie Ochipinti; Guarda-roupa; Joan Bergin; Maquilhagem: Janice Alexander, Maggie Fung, Kenny Myers, Peter Robb-King, Mariko Sakata; Direcção de produção: Teresa Kelly, Mark Scoon, Cristen Carr Strubbe; Assistentes de realização: Alan B. Curtiss, Jody Spilkoman, Lynn Struiksma; Departamento de arte: Jory Alvarado, Phillis Lehmer, Sally Thornton; Som: Richard King; Efeitos especiais: David Blitstein; Efeitos visuais: Giacun Caduff, Janek Sirrs; Conselheiro: David Copperfield; Produção: Christopher Ball, Valerie Dean, Jordan Goldberg, Christopher Nolan, Aaron Ryder, Charles J.D. Schlissel, Emma Thomas, William Tyrer.
Intérpretes: Hugh Jackman (Robert Angier), Christian Bale (Alfred Borden), Michael Caine (Cutter); Piper Perabo (Julia Angier), Rebecca Hall (Sarah Borden), Scarlett Johansson (Olivia Wenscombe), Samantha Mahurin (Jess Borden), David Bowie (Nikola Tesla), Andy Serkis (Alley), Daniel Davis (Juiz), Jim Piddock, Christopher Neame, Mark Ryan, Roger Rees, Jamie Harris, Monty Stuart, Ron Perkins, Ricky Jay, J. Paul Moore, Anthony De Marco, Chao Li Chi, Gregory Humphreys, John B. Crye, William Morgan Sheppard, Sean Howse, Julie Sanford, Ezra Buzzington, James Lancaster, Olivia Merg, Zoe Merg, Johnny Liska, Russ Fega, Kevin Will, Edward Hibbert, Christopher Judges, James Otis, Sam Menning, Brian Tahash, Scott Davis, Jodi Bianca Wise, Nikki Glick, Enn Reitel, Clive Kennedy, Rob Arbogast, Chris Cleveland, etc. Duração: 128 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia; Classificação etária: M/12 anos;