“Frost/Nixon” assemelha-se muito a um combate de boxe entre duas personagens com real existência física: o apresentador de televisão David Paradine Frost (nascido a 7 de Abril de 1939), que ainda há pouco mantinha na televisão inglesa um programa de entrevistas, “Frost Over The World”, na “Al Jazeera English”, e Richard Milhous Nixon (nascido em Yorba Linda, Califórnia, a 9 de Janeiro de 1913 e falecido a 12 de Abril de 1994), que foi o 37º Presidente dos Estados Unidos da América, entre 1969 e 1974, ano em que resignou, depois de se ver envolvido no caso Watergate. Nixon foi o único Presidente dos EUA até hoje a ser obrigado a afastar-se do cargo, em virtude de ter cometido graves irregularidades durante a sua administração. Republicano, tinha atrás de si uma carreira repleta de duvidosos casos políticos, desde a sua activa e decisiva contribuição para o período da “Caça às Bruxas”, durante o Machartismo, tendo depois sido Vice-presidente de Dwight D. Eisenhower (entre 1953 e 1961). Em 1960 perdeu as eleições presidenciais para John F. Kennedy, e em 1962 para governador da Califórnia. Mas, em 1968, seria eleito Presidente e reeleito em 1972. A sua Presidência seria tumultuosa, com graves questões internas e externas (guerra do Vietname, a que curiosamente pôs termo, depois de uma escalada fatídica, e de ter a aceite uma má dissimulada rendição, relações com a China e a URSS, com as quais logrou alguma contenção, guerra com o Cambodja, o Laos, crise económica e caos social nos EUA). A 14 de Agosto de 1974 demitia-se de Presidente, com uma curta declaração, e o seu sucessor, Gerald Ford, anunciava, pouco depois, um perdão para todos os “crimes federais” por si cometidos. Assim se retirou para a sua residência “La Casa Pacifica”, em San Clemente, Califórnia, onde escreveu, em 1978, as mil páginas “The Memoirs of Richard Nixon”, a que se seguiram nove outros volumes (todos muito bem remunerados).
Anteriormente, porém, em 1977, Nixon pretendeu organizar um regresso à vida pública, procurando de alguma forma recuperar a imagem perdida. Foi por isso que aceitou encontrar-se com David Frost, apresentador de shows de variedades e entrevistador de celebridades mediáticas, que tivera alguns programas de certo sucesso em Inglaterra, mas que caíra em desgraça e se encontrava então na Austrália. Forst e Nixon eram por esse tempo “anjos caídos” que viviam tempos de exílio forçado. Ambos combatentes de têmpera, ambos pretendiam um regresso em grande. As seis entrevistas que ficaram combinadas (por um chorudo pagamento de 600 mil dólares, quase todos saídos do bolso de Frost) seriam, portanto, um combate público em que só poderia “haver um vencedor”. Ou um “combate combinado” que assim teria dois vencedores, o que também chegou a ser ventilado nesse momento.
As primeiras gravações das entrevistas não foram brilhantes para Frost, que se mostrava demasiado retraído, dando todos os pontos a Nixon, mas, quando chegou a ocasião de abordar o caso Watergate, tudo mudou de figura. Nixon acabaria por confessar publicamente alguns erros e ilegalidades (que, quando cometidas por um presidente, “não eram ilegalidades”, explicou perante a incredibilidade do país). As entrevistas que até aí não tinham motivado grande interesse por parte das cadeias de tv americanas, acabaram por ser um sucesso televisivo, com mais de 45 milhões (há quem fale em 50 milhões) de espectadores em todo o mundo, o que as tornou no maior êxito de sempre no campo das entrevistas políticas televisionadas.
Enquadrado historicamente o acontecimento, e o seu inequívoco interesse, cremos não andar muito longe da verdade se dissermos que o verdadeiro protagonista deste filme de Ron Howard é, no entanto, George W. Bush. E porquê? Porque muitas vezes ouvimos Frost, no filme, fazer perguntas a Nixon e quem ouvimos a responder é Bush, tal a sobreposição de questões. De certa forma as entrevistas de Frost constituíram uma espécie de julgamento público de um presidente que levou os EUA para a guerra com falsas questões, com mentiras organizadas a seu favor, acabando por desencadear uma das piores crises militares, políticas, económicas, financeiras e sociais da história daquele país e do mundo. Estamos portanto a ouvir perguntas que poderiam ser endereçadas a George W. Bush, e a julgá-lo publicamente por interposta pessoa. O resultado é confrangedor para um e outro. O filme adquire o estatuto de requisitório indiscutível.
Mas o filme pode (e deve) ser visto ainda sob outros pontos de vista, nomeadamente o das relações entre os meios de comunicação social e o poder instituído. Nixon era pessoa que, a bem ou a mal, “sabia” tratar com a comunicação social. Os seus processos eram quase sempre mafiosos, mas o filme relembra como “as coisas” se podem estruturar. A começar desde logo pelo próprio caso Watergate, que, na base, tem precisamente este problema: como calar certas vozes incómodas da oposição nos jornais? Foi para saber como que colaboradores da Casa Branca resolveram entrar em instalações do Partido Democrata para recolher informações. Ao serem descobertos, desbloquearam toda a tramóia que haveria de liquidar Nixon.
Ao olharmos, porém, para estes dois homens em confronto, não nos restam muitas dúvidas de que ambos se equivalem. O duelo é de morte, mas o que está em causa será a reposição da verdade e o julgamento público de um Presidente crápula? Ou será antes os 600 mil dólares que fascinaram Nixon e saíram do bolso de Frost? Ou será o futuro profissional de cada um deles e da rede de colaboradores que os mantêm em exercício? Há algum quixotismo em Frost? Há algum arrependimento em Nixon? Não estarão ambos a investir ao mais alto nível nos seus futuros? Um a querer regressar à ribalta da TV de Inglaterra, outro a querer rentabilizar, o melhor possível, as suas memórias, impondo a comiseração por um lado e o branqueamento, limitado é certo, da sua imagem pública? Afinal o resultado foi o julgamento de Nixon, é uma realidade, mas com um perdão para todos os “crimes federais” e a nova imagem do homem que, apesar dos crimes cometidos, se tinha humilhado, confessando num acto de contrição que todo o país (e o mundo) iria compreender (e perdoar), continuando a comprar “as memórias” que iria futuramente publicar e tanto jeito lhe fariam à contabilidade pessoal.
A forma como a televisão (e toda a comunicação social por arrasto) dialoga com o poder é outra questão delicada que o filme aborda, com alguma subtileza, mas mostrando bem o jogo de influências, sobretudo quando se apostam fortunas numa transmissão e se arriscam carreiras. O início da obra é esclarecedor, desvendando os mecanismos que estão na base dos projectos e como os mesmos se montam ou desmontam.
Claro que Ron Howard, não sendo um cineasta particularmente criativo e um “autor” de primeiro plano, é um realizador atento e eficaz. O filme movimenta-se bem em interiores cerrados, as cenas das entrevistas conseguem justificar o tom de quase “thriller” psicológico, adensando o clímax com habilidade. Há um momento, absolutamente ficcionado no filme, que funciona muito bem, quando Nixon, embriagado (apenas um plano de copos e garrafa, anterior, prenuncia o desenlace), telefona a meio da noite a Frost. No dia seguinte, Frost evoca esse telefonema a Nixon, este não o recorda, mas essa confidência do entrevistador irá retirar ao ex-presidente toda a segurança, fragilizá-lo e viabilizar a confissão. Também aqui as comparações com Bush não deixam de se estabelecer.
Retirado de uma peça de teatro de Peter Morgan, que também a adaptou a cinema, “Frost/Nixon” não perde esse intimismo de “filme de câmara”, conseguindo sustentar o confronto (“aproxima-te mais dele, para o intimidares, olha-o nos olhos, interrompe-o para o enervares, não o deixes monologar sobre o que quer”, aconselham os colaboradores de Frost ao apresentador, que até aí garantia a Nixon muito à vontade). A adaptação é por isso boa, mantendo certamente as virtualidades da peça que foi sucesso em Londres e na Broadway, procurando novos valores narrativos, sem desvirtuar o essencial. Informação adicional: Frank Langela e Michael Sheen também interpretavam os mesmos papéis no teatro que agora recriam no cinema.
Vamos, pois, e finalmente, ao diálogo de actores. Frank Langella (Richard Nixon) e Michael Sheen (David Frost) são dois bons actores, particularmente o primeiro. Deve sublinhar-se o trabalho de ambos, na assimilação de características e de pormenores de gestos, olhares, entoações, mas se o desempenho é minucioso, e por vezes brilhante, há algo que nos afasta dos verdadeiros protagonistas. Percebe-se que a intenção não foi mimar ao extremo o físico de Nixon ou Frost, mas construir essas figuras sobre a aparência física dos actores que lhe acrescentaram apenas certos tiques ou particularidades. O resultado, não afectando demasiado o filme, acaba por nos distanciar. Não sabemos mesmo se não haverá algo de propositado neste distanciamento (um Nixon que não é totalmente o Nixon das actualidades e dos telejornais da época, para o filme se centrar mais na figura de um Presidente dos EUA, pouco escrupuloso, dado à bebida, prepotente e ardiloso, populista e atávico – será só Nixon que corresponde ao retrato, quando o filme de Ron Howard se estreia em plena campanha de Barack Obama?).
Resumindo: não será o grande cinema norte americano, mas é definitivamente o cinema norte americano liberal, que investiga, que denuncia, que tenta clarificar, tomar partido, defender causas, e mostrar que, no final, numa democracia, por muitos erros que se cometam, há sempre mecanismos que permitem de alguma forma remediar o mal. Claro que para quem não acredita nas democracias representativas, este filme não faz mais do que salvar a face. Aceitamos até a crítica, desde que nos mostrem alternativas, e alternativas viáveis. Mas não serão certamente exemplos do passado, carregados de prepotência, tortura e morte, que nos irão fazer mudar de ideias. Por isso achamos este filme um bom exemplo do que o cinema pode fazer para interferir na realidade e ajudá-la a mudar, para melhor.