terça-feira, setembro 30, 2008

MACHADO DE ASSIS NO CINEMA


(...) O que mais me espanta, hoje em dia, na escrita de Machado de Assis, sobretudo a partir de “Memórias Póstumas”, é a multiplicidade de registos que o colocam como um ainda romântico nalguns aspectos, um realista em plena maturidade, mas igualmente um modernista “avant-la-letre”, um surrealista, um concretista, um vanguardista, enfim, também um homem que alguns cuidam ser um irremediável moralista conservador, mas que eu sinto mais um militante de valores morais caídos em desuso, ou um critico da condição humana que não é tão elogiável na sua totalidade como seria de desejar, corrompida pela eterna hipocrisia, pela omnipresente corrupção, pelo viciante carreirismo, pela falta de verdade e de hombridade. Para Machado de Assis a Humanidade é, sempre o foi para trás, e não parece mudar muito no futuro, uma realidade que merece não muita credibilidade, pouca simpatia e muita desconfiança quanto aos seus propósitos mais íntimos. Céptico, pessimista, escritor de uma sibilina ironia, extremamente subtil, mas ferozmente observadora, Machado de Assis capta aí muita da simpatia do público do século XXI. Igualmente descrente e pessimista quanto ao futuro da espécie.
Mas, atenção, a existência é uma contradição insistente: lendo Machado de Assis percebe-se que, para lá do seu ingénito pessimismo e cepticismo, há uma devoradora vontade de viver, um gosto pelos prazeres da vida que é visível em qualquer das suas páginas. Podemos estar muito incrédulos em relação ao Homem, mas lendo Machado de Assis não podemos deixar de glorificar a sua arte, afinal resultado de um “humano”. Lendo as suas descrições, não deixaremos de nos seduzir pelo olhar “obliquo e dissimulado” de Capitu, pelas ruas do Rio de Janeiro, entre as quais a de Matacavalos, pelas jantaradas, pelos bailes, pelas travessias das noites e dos dias tropicais, pelo urbanismo de metrópole, pela densidades das personagens que se não esquecem. Afinal por esta Humanidade frágil que, não sendo perfeita, longe disso, não deixa de ser sedutoramente apetecível. Ler Machado de Assis é ler alguém que nos dá ganas de viver, mas muita vontade de lutar contra o que está mal, e tentar modificar, pouco que seja, o que estiver ao nosso alcance. (...)

(Toda a comunicação ao Encontro Internacional sobre Machado de Assis, pode ser lido aqui: TEXTOS e Cia)

VAVADINDO, DE REGRESSO




Vai iniciar-se a III Temporada dos "Vavadiando", desta feita com uma novidade.
Continuará a haver "Vavadiandos" (com jantar), uma vez por mês,
acrescidos agora de um (novíssimo) "Vavadiando com Livros",
igualmente uma vez por mês.
Mas estes "Vavadiando com Livros" surgem depois de jantar,
pelas 21, 30 horas, com serviço livre (cada um toma e paga o que quiser,
do cafézinho à lagosta com champanhe,
para quem não sofrer desta doença sistemática chamada "crise").
O primeiro "Vavadiando com Livros" é já no dia 3, com dois novos autores,
ambos frequentadores assíduos dos anteriores "Vavadiandos",
Maria Quintans e João Conchas.
Quanto a mim, apareçam!, já tenho saudades.

segunda-feira, setembro 29, 2008

FICAP 2008: OS PRÉMIOS


"PHILIP GLASS" e "METAMORFOSES"
VENCEM "GRANDES PRÉMIOS" DO FICAP 2008!

Foram anunciados ontem (28.10.08) os vencedores da 1º edição do FICAP – Festival Internacional de Cinema de Artes Performativas que decorreu no Museu Nacional do Teatro em Lisboa de 20 a 28 de Setembro.
O Júri Internacional presidido pelo realizador e crítico Lauro António e composto pela realizadora Monique Rutler, a actriz São José Lapa, o coreografo Peter Michael Dietz, a actriz Inês Lapa Lopes e o arquitecto, designer e ilustrador João Concha atribuíram o grande Prémio do FICAP 2008 ao filme “GLASS: A PORTRAIT OF PHILIP IN TWELVE PARTS”, de Scott Hicks, sobre o compositor Philip Glass.
Atribuíram também o Prémio “Artes Performativas no Audiovisual” a “APROP”, de Aitor Echeverria, o Prémio Ficção a “PAVILLON NOIR”, de Pierre Coulibeuf, o Prémio “Making Of” a “SO YOU CAN DANCE!” de Nicos Dayandos e Stelios Apostolopoulos, o Prémio “Espectáculo Gravado” a “BODY REMIX – GOLDBERG VARIATIONS”, de Marie Chouinard com uma menção honrosa para “BATTUTA”, de Bartabas, o Prémio “Biografias e Documentários” a “BETWEEN HEAVEN AND EARTH”, de Frank van den Engel e Masja Novikova com uma menção honrosa a “THE SHILLONG CHAMBER CHOIR & THE LITTLE HOME SCHOOL”, de Urmi Juvenkar. O Júri decidiu ainda atribuir um Prémio Especial do Júri a “LE QUATUOR”, de Roberto Maria Grassi com uma Menção Honrosa para “LÜBER IN DER LUFT” de Anna-Lydia Florin.
O Júri Nacional presidido pela realizadora Rosa Coutinho Cabral e composto pelo cenógrafo Bruno Guerra e pelo Cantor Joaquim Moreno decidiram atribuir O Grande Prémio Nacional a “METAMORFOSES” de Bruno Cabral, sobre o grupo de teatro da Crinabel.
Atribuíram ainda o Prémio “Artes Performativas no Audiovisual” a “SOLISTAS”, de Filipe Martins, o Prémio Ficção a “BURITIZAL”, de Alexandre Braga, o Prémio “Making Of” a “DAS REINGOLD MAKING OF” de Fernando Ávila, o Prémio “Espectáculo Gravado” a “JARDIM DE INVERNO”, de Rui Simões, o Prémio “Biografia” a “LAPSUS SONOROS”, de Luís Margalhau e o Prémio “Manuel Costa e Silva de Documentário” a “KUDURO FOGO NO MUSEKE” de Jorge António. O Júri decidiu ainda atribuir Menções Honrosas a “A MINHA ESCOLA É UM PALCO” de Margarida Moura Guedes, “RITMOS DA CIDADE”, de Luís Margalhau, “INFORME”, de Eva Ângelo, “ENRAPTURED WITH LUST MAKING OF LUSITÂNIA PALYBOYS”, de Daniel Neves e “LOOKING BACK INTO THE FUTURE”, de Ivo Serra e Rita Natálio.
O Júri Universitário constituído por Victor Jorge, Zulmira Gamito, Carlos Natálio e João Telmo Dias decidiu atribuir os seguintes prémios: Prémio Documentário Ficção a “LA DANSE DE L’ENCHANTERESSE”, de Adoor Gopalakrishnan e Brigitte Chatagnier, Prémio Documentário “BETWEEN HEAVEN AND EARTH”, de Frank van den Engel e Masja Novikova, Prémio Curta Metragem a “KARAOKE”, de Carolina Hellsgard e uma Menção Honrosa a “GENERATION 68” de Simon Brook.
A organização do festival atribuiu ainda o Prémio Pedro Bandeira Freire ao filme “DARRYL HENRIQUES IS IN SHOW BUSINESS”, de William Farley.
www.ficap.pt
ficap@ficap.pt

sábado, setembro 27, 2008

PAUL NEWMAN


PAUL NEWMAN SEMPRE !
(25.jan.1925 - 26.set.2008)


















Em 1974, o “estúdio Apolo 70” (sala de cinema hoje encerrada, mas que se situava no Centro Comercial do mesmo nome, em Lisboa, frente ao Campo Pequeno,), cuja programação foi, desde a sua inauguração até quase ao seu encerramento, dirigida por mim, ensaiava uma colecção de "Monografias" de cinema, a primeira das quais (saber-se-ia depois que primeira e única) dedicada ao cinema norte-americano da época, com o título "USA", e o propósito de chamar a atenção para alguns (então) jovens realizadores cujas obras iniciais me tinham impressionado vivamente e a quem augurava bom futuro. Paul Newman era na altura um actor já consagrado mas um realizador com apenas três filmes, todos eles a mereceram os maiores encómios. Os outros para quem o livrinho apontava talento não se esquivaram a esse desígnio: George Roy Hill, George Lucas ou Peter Bogdanovich não se fizeram rogados e assinaram obras que ficaram na história do cinema.
Nesse livrinho, de que recupero a memória (ano feliz o de 1974, por tantas e tantas razões, e também por essa que todos lembram), escrevi uma introdução à análise da obra de Paul Newman como realizador, onde dizia:
“Um dos mais brilhantes discípulos do “Actor’s Studio”, comparável somente a um Marlon Brando, Paul Newman é um actor de composição nervosa, apaixonada (quase sempre atlética, fazendo valer a sua natureza particularmente dotada para os papéis de acção), de recortes subtis e uma grande mobilidade de tom.
Inteligente e exigente para com o seu próprio trabalho, Paul Newman escolhe com algum rigor os filmes em que aceita intervir como intérprete, podendo ver-se na sua já longa filmografia os nomes seguros de cineastas como Robert Wise, Arthur Penn, Richard Brooks, Leo McCarey, Otto Preminger, Robert Rossen, Martin Ritt (de quem parece ser o actor predilecto, dado que para ele trabalhou já por seis vezes), Alfred Hitchcock, Stuart Rosenberg, John Huston ou George Roy Hill. São de referir as intervenções inesquecíveis em “Vício de Matar” (no papel de Billy, the Kid, numa interpretação de raiz psicanalítica da lendária figura do gunfighter), “Gata em Telhado de Zinco Quente” e “Corações na Penumbra” (primeiros contactos cinematográficos de Newman com o universo de Tennesse Willams, dramaturgo que muito o viria a influenciar como autor), “A Vida é Um Jogo” (possivelmente um doa seus melhores trabalhos, na figura de um jogador de bilhar), “O Presidiário”, “Dois Homens um Destino”, “O Juiz Roy Bean” e “O Misterioso Mackintosh” (ambos de John Huston) ou no recente “The Sting”.”
Nesse mesmo livrinho resumia a já vasta carreira de Paul Newman:
Nasceu a 26 de Janeiro de 1925 em Cleveland, Ohio, E.TJ.A.. Filho de Theresa Newman e de Arthur S. Newman, Paul começou a representar com doze anos, sendo membro do grupo infantil “The Cleveland Players”. Prosseguiu a sua carreira na “Shaker Heights High Scliool” e, mais tarde, no “Kenyon College”, onde se inscreveu para a formatura em Ciências Económicas.
Alguns meses depois, por ocasião da entrada dos E.U.A. na Segunda Grande Guerra, interrompeu os estudos e alistou-se na Marinha. Tendo servido durante três anos, na zona do Pacífico, foi desmobilizado em 1946. Regressou ao “Kenyon Coliege” e mudou o curso dos seus estudos. Interessa-se agora pela literatura e pelas artes dramáticas, com a vaga intenção de se tornar professor. Entre 1951 e 1952 estuda na “Yale Schooll of Drama”.
Passado tempo actuou na Broadway, com Ralph Meeker e Janice Rule, interpretando o papel de Alan Seymour na peça “Picnic” (1953), que esteve cerca de catorze meses no cartaz. Apôs uma única audição, foi admitido no “Actor's Studio”, de Lee Strasberg, onde principiou a estudar com actores como Eli Wallach, Rod Steiger, Geraldine Page e Julie Harris.
Ainda durante as representações de “Picnic”, a Warner Bros fecha com ele um contrato de longa durarão. No seu primeiro filme, “The Sllver Chalice” (1954), Paul Newman desempenhou o papel de um escravo grego. Esse trabalho desagradou-lhe enormemente pelo que, ainda antes do termo das filmagens, valeu-se do poder do opção que lhe era conferido pelo contrato para trabalhar numa outra peça a exibir na Broadway, “Ths Desperate Hours”, um grande sucesso, tanto sob o ponto de vista comercial corno artístico.
Paul Newman era casado, desde 1958, com Joanne Woodward. De colaboração com Barbra Streisand, Sidney Poittier, Steve McQueen e Dustin Hoffman foi um dos associados da jovem produtora “FirsT Artists Produtions Company, Lda”.
De 1974 para cá interpretou outras dezenas de obras. Como realizador, os seus filmes mais conhecidos foram “Raquel, Raquel” (1968), “Os Indomáveis”, “A Influência dos Raios Gamas sobre o Comportamento das Margaridas” ou “The Glass Menagerie”.

MACHADO DE ASSIS . CENTENÁRIO

Colóquio Machado de Assis
Centenário da morte (1908-2008)
Fundação Calouste Gulbenkian
29 e 30/09/2008
09h30 às 18h00
Auditório 3

PROGRAMA (sujeito a alterações)


Dia 29 de Setembro, Segunda-feira
09h30 - Sessão de Abertura : Embaixador Lauro Moreira, Doutor Marçal Grilo e Prof. Doutor Carlos Reis
9h45 - Conferência: “A modernidade e a Universalidade da obra de Machado de Assis” : Prof. Doutor John Gledson
10h30 - Debate
11h30 - Painel Temático: “Machado de Assis e a ficção brasileira” Moderador: Prof. Doutor Carlos Reis
Prof. Doutor António Dimas – “A linhagem feminina na ficção brasileira: de Lívia a Capitu”
Prof. Doutor Antônio Carlos Secchin – “Alencares e Assis”
Profª. Doutora Solange Ribeiro de Oliveira – “A música na ficção de Machado”
14h45 - Conferência: “O significado da obra de Machado de Assis na Literatura de Língua Portuguesa” : Prof. Doutor Abel Barros Baptista
15h30 - Debate
16h15 - Painel Temático: “Machado de Assis e Portugal”
Moderador: Prof. Doutor Carlos Reis
Prof. Doutor Arnaldo Saraiva (título a anunciar)
Prof. Doutora Maria Aparecida Ribeiro: “Machado de Assis, leitor de Camões”
17h45 - Conferência: “Verosimilhança e Verdade”. Prof. Doutor Helder Macedo
19h00 – Música :“A música brasileira no tempo de Machado de Assis” (modinhas, lundus, valsas, polcas e chorinhos) - Recital do Duo Fernando Cupertino e Consuelo Quireze (piano e voz)

Dia 30 de Setembro , Terça-feira
09h30 – Sessão de cinema, com exibição dos filmes: “Alma Curiosa de Perfeição” : documentário sobre a vida e a obra de Machado de Assis, dirigido por Maria Maia
11h00 - “O amor de Machado de Assis pela Língua Portuguesa” : vídeo/depoimento do Prof. Evanildo Bechara
11h30 - “Machado de Assis – o filme” : documentário dirigido por Luelane Corrêa, com depoimentos de Académicos Brasileiros sobre Machado de Assis
14h30 - Comunicação do Cineasta Lauro António: “Machado de Assis no cinema”
15h00 - “Memórias Póstumas de Brás Cubas”: longa-metragem de André Klotzel 17h00 – Teatro: “Contando Machado de Assis”: O actor José Mauro Brant apresenta os contos “Missa do Galo” e “Mariana”, costurados por fragmentos de “D.Casmurro”. Direcção de Antonio Gilberto

LIVROS: APOPLEXIA DA IMAGEM

Foi assim, para quem gostar de saber:




“APOPLEXIA DA IDEIA”
Foto MEC
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Convidado a apresentar o livro de estreia de poesia da Maria Quintãns, com ilustrações de João Concha, debato-me com várias inquietações e múltiplas dúvidas. Por exemplo, quem é Maria Quintãns? Claro que não sei. Dizia Sócrates que se “te conheceres a ti próprio, conhecerás o universo e os deuses.” Poucos conhecem o universo, por muito que porfiem, e menos ainda são os que conhecem os deuses, apesar de por eles muito se implorar. Raros serão os eleitos (se os houver) que se “conhecem a si próprios”. Eu desconheço-me, quanto mais à Maria Quintans. Na verdade descobrimo-nos pelas vias ínvias da blogosfera, jantámos juntos pela mão de uma amiga comum que estará certamente hoje aqui presente, a Isabel Mendes Ferreira, tornámo-nos amigos (mas não “conhecidos”!) ao longo dos vários vavadiandos de que somos assíduos frequentadores, já viajámos juntos pelas estradas de Portugal, normalmente rumo a inaugurações de exposições, uma delas precisamente de João Concha, ali para os lados do Ribatejo, mas será que conheço a Maria Quintans? Não me parece.
Cada pessoa é um mundo, onde é difícil penetrar, e ainda bem porque o mistério adensa o apetite. Esta Quintans que alguns ousam tratar por “bandida”, não é exemplo que se furte à regra, tanto mais que, logo desde os primeiros dias em que a li, me deparei com uma escrita que de coloquial não tem nada, que de fácil digestão também não, cuja tecedura de palavras, por muito sedutora que seja a uma primeira vista, não se deixa apreender na ratoeira de uma transparência sem mais. Claro que curiosamente o que mais sei de Maria Quintans me vem precisamente da leitura dos seus textos, quase sempre poéticos, dado que desconheço por completo os seus relatórios de trabalho (suponho que Maria Quintans trabalhe honestamente como qualquer de nós, para lá da sua produção poética!).
Perguntam Vossas Excelências como conheço melhor a Quintans através do que ela escreve do que através dos fortuitos encontros da vida? Pois bem, sempre achei que é através de ler o que alguém escreve que melhor se chega ao interior de quem o escreve (o mesmo se passa com quem pinta, compõe, filma, interpreta, e por aí fora). Isto por quê? Quem escreve fá-lo através da máscara da arte (transfigurando a realidade), o que à partida parece contrariar a minha tese. Engano. Ledo engano, nas palavras de Camões. Quanto mais nos mascaramos, mais nos descobrimos, porque a sugestão da máscara nos leva a falar verdade a mentir. Por miúdos: julgamos estar muito escondidinhos atrás da lograda máscara da ficção, e por isso mais nos expomos. Mais nos confessamos.
Dirão então que tudo é fácil, basta ler-se Freud e aplicar os princípios, e toda a vida humana será vasculhada até ao seu mais íntimo. Outro engano. Ninguém lê “a verdade”, mas “a sua verdade”. Eu leio a prosa poética de Maria Quintans segundo a minha perspectiva, interpreto-a à minha maneira, cozinho-a com os meus condimentos. O resultado final é gastronomia a meias: ela dá o conduto e os acessórios, mas a pimenta, o sal, os coentros, a salsa fica “à minha maneira”, segundo o meu gosto pessoal. Querem uma prova, agora pegando no belíssimo trabalho do João Concha? Agarrem na capa desta “Apoplexia da Ideia” e olhem bem. Nada de concreto nos é dito, apenas sugerido. Neste aspecto João Concha emparelha muito bem com Maria Quintans. Quando a olhei pela primeira vez, vi um revólver e uma alusão nítida a um filme de Edwin S. Porter, o primeiro western da história do cinema, “The Great Train Robbery”, de 1903. Deformação profissional? Parei, olhei melhor e veio-me à imaginação o dedo indicador do Tio Sam nos cartazes que convidavam os americanos a juntarem-se ao exército, não para combater no Iraque ou no Afganistão, mas sim para defender a democracia durante a II Guerra Mundial. Será um dedo indicador apontado à nossa consciência? Reparo agora que também pode ser uma bem profunda vagina, com uma “apoplexia” por cima e uma “da ideia” por baixo. Sugestiva leitura erótica de tons macerados, o vermelho do sangue, o preto na anarquia e uma cinza de extintas fogueiras passadas. Será que é? Quem confessa que teve uma mesma leitura? Expus eu estas leituras a uma pessoa amiga que liminarmente me desmentiu: “nada disso, o que aqui vejo é uma lâmpada da ideia brilhante, e da apoplexia.” Estará certa? Ou estará certo o miúdo que não sabe o que é apoplexia, benza-o Deus!, e explica a capa como “uma bala pendurada por fios de plástico de um “coiso” metálico pregado numa parede forrada a papel de jornal”. Como se vê a cada um a sua verdade. A capa é a mesma, as respostas diversas, até mesmo desencontradas, certamente todas certas e não todas erradas, o mesmo se passando com a poesia de Maria Quintans. Se as interpretações podem ser muitas, a qualidade plástica e a eficácia simbólica de João Concha é indiscutível.
Maria Quintans. Desta mulher de quem já sou amigo, mas de quem desconheço ainda quase tudo, venho falar hoje. Aqui. Na difícil tarefa de “apresentar” uma obra, um filho primogénito. Quero, porém, frisar a frase “de que já sou amigo”. Isto porque não é o facto de ser amigo que me traz aqui. Será talvez muito mais a consciência de que dela desconheço quase tudo, de uma mulher que se propõe estrear-se na publicação de um livro, que se arroja lançar o grito de uma poesia muito pessoal, hermética, críptica, quase impenetrável, mas que soa bem à leitura, que incomoda a compreensão, que sugere imagens infinitas, que desdobra múltiplas interpretações, que oscila entre a elegância e a agressão, entre o rasgão e o afago, entre a dor e o prazer, entre o sangue, a lágrima e húmus vaginal. Aqui estou movido pelo desafio da descoberta.
Sobre essa poesia escrevi o seguinte, procurando dar o melhor de mim mesmo:
A poesia não é fácil. Pode ser clara e transparente, mas só o é na aparência. Pode ser opaca e resistente. A poesia para o ser, exige. Exige da imaginação de quem a concebe, escrevendo-a ou lendo-a, porque a poesia não se escreve só, também se lê. Da cumplicidade de quem a lê para a de quem a forja, de quem a constrói com arte de fio-de-prumo, na engenharia das palavras, dos silêncios, dos paradoxos. “Invoco as figuras de estilo para as queimar na fogueira dos paradoxos normais”, diz Maria Quintans. Queimam-se as regras que normalizam a “poesia (que) não existe”, para das cinzas dessa fogueira se “gozar na cama dos verbos com os substantivos podres a deixar vestígios de sémen no ruído dos ventres impossíveis.”
A poesia de Maria Quintans é isso mesmo, parte da transgressão da normalidade percepcionada, da “apoplexia da ideia”, para o uso imoderado da palavras, procurando pelo caminho, nessa vertigem de iniciado, atingir o vórtice dessa “confusão mental e perda de consciência” que define a afecção cerebral, “fase terminal da desordem do medo.” A poesia destapa emoções ou encobre-as. A poesia de Maria Quintans é exorcismo, desconstrução do universo, sobretudo o universo do interdito, do medo, do silêncio, da dor, da mágoa, da ausência, da lágrima, dos “sacrifícios de morte”, do assombramento… Para que “a pele (seja) um gesto primitivo”, e se “invente a ilusão”. O desencontro: “não penses que é nesse autocarro que vais. eu também não.” Desespero? Sim e não, porque há sempre “um corpo. um caminho a descer na invenção do braço. há um passo.” A poesia de Maria Quintans é sobretudo sensitiva, quando se perdeu, ou se ignorou, o significado das palavras. Ficam os dedos e a pele, a boca e a língua, as mãos e o seio, o ventre e o sexo. “a forma da palavra é o desenho do sonho.” Por vezes o sonho irradia: “e eu, que não sei desenhar, fumo um cigarro na linha das tuas pernas”. Gosto desta poesia que se transfigura, do grito à gruta, da noite ao dia.
Por alguma razão os magníficos desenhos de João Concha acompanham o grito, a negro. “o paraíso é por ali. eu vou por aqui”. Inconciliável.
“os poetas não acabam adormecem” Poetas há que acordam, a meio da noite, para se imporem na asa do dia. “a escrita é o muco do orgasmo”. A sensualidade: na palavra, na frase. Na apoplexia da ideia. A lição dos surrealistas e da escrita automática como forma intima e secreta de escavar no subconsciente. Significativamente, “lobos somos todos”, e “a vertigem não é queda. é só o medo dela.” O medo, o silêncio, o rasgão de luz, as trevas do interdito, com a pele a luzir ao fundo. Um ponto no horizonte do prazer. Indizível. Uma poesia com tacto e olfacto. Um cigarro. O fumo. Um eco de jazz.
26 de Setembro de 2008

quinta-feira, setembro 25, 2008

FICAP

FESTIVAL DE CINEMA SOBRE ARTES PERFOMATIVAS
Desde sábado (e até ao próximo domingo) cumpro a tarefa de Jurado no I FICAP (Festival Internacional de Cinema de Artes Performativas), dirigido pelo Frederico Corado, meu filho (para que conste), que teve a ideia e a concretizou com a cumplicidade do director do Museu do Teatro, de alguns jovens voluntários (ainda dizem que a juventude está toda virada do avesso!), meia dúzia de euros de apoiantes (não oficiais e, sobretudo, estrangeiros, imagine-se!).
O Festival está a ser um sucesso e um deleite para todos os que por lá têm passado (e não sendo multidões, são bastantes para uma primeira edição, sem qualquer apoio publicitário, sem um único cartaz, por exemplo!). O Museu fica quase ao fim da Calçada de Carriche, vira à esquerda, entra nos chamados Paços do Lumiar, quase pegado ao Museu do Traje, e é belíssimo. Um palácio no meio de um jardim fabuloso, com uns fins de tarde dourados e dengosos e umas noites soberbamente mansas neste pouco outonal mês de Setembro, transpirando ainda calor. Passear pelo jardim, ou ficar sentado num banco, ao cair da noite, enquanto se espera pela sessão seguinte, é uma experiência magnífica.
Mas há uma outra experiência inesquecível e a que se deve dar todo o mérito ao Frederico que, teimoso como o pai, levou a sua avante, mesmo contra a minha opinião inicial. Quis o Frederico meter todo o Festival nas instalações do Museu, com várias secções a concurso, e duas fabulosas retrospectivas que ele milagrosamente “inventou” com a invulgar cooperação dos homenageados (Peter Brook e Bob Wilson). Apenas há repetições na Malaposta. Ora sempre previ que umas sessões podiam interferir sonoramente noutras. Depois há sessões improvisadas em salas do próprio Museu, além das do Auditório, propriamente dito. Previa algum incómodo e concorrência sonora desleal.
Ora, no primeiro dia de concurso, a sessão deste, que decorria no Auditório, na cave, acabou primeiro do que a sessão do Bob Wilson, no rés-do-chão. E foi uma experiência única sair de uma sala de cinema, subir umas escadas e dar de frente com a traseira de um outro ecrã, onde se projectavam outras imagens, tudo envolvido numa total semi-obscuridade, mas viva, animada, misteriosa. Quase uma instalação. Sair de um filme sobre o espantoso Theatre Equestre Zíngaro, ou sobre a notável companhia de bailado de Marie Chrouinard, assistir ao registo de um concerto-entrevista do virtuoso russo Boris Berezovski, que compara a música ao jogo num Casino, olhar para os serenos bailados das indianas de Kerala, passar uma noite com o Tango de um mestre argentino, Rodolfo Mederos, recordar a geração de 1968 num belíssimo filme de Simon Brook (filho de Peter Brook), evocar os tempos de “Hair” e de uma juventude que acreditava que o mundo se podia mudar (e pôde, e mudou!), descobrir uma família que vive (duplamente) perigosamente do circo nas aldeias longínquas do Uzbequistão, desvendar a aventura de um pianista indiano que se retira para a sua pobre e distante cidade natal e aí cria uma escola de música para crianças que dali partem à conquista do mundo com concertos nas mais variadas capitais do mundo… é algo de extraordinário. Acabada a sessão, subir uns degraus e dar de caras com uma prodigiosa encenação de Bob Wilson ou Peter Brook, que mais se pode pedir, para o dia ser perfeito? Ver um museu vivo, a respirar em todas as salas, a animar as suas paredes, enfim… passear com um realizador brasileiro, que veio jantar connosco e que partia para Brasília na manhã seguinte, e dar uma escapadela nocturna pelas salas do Museu, na companhia do director que apaixonadamente ia referindo pequenos apontamentos sobre algumas peça…a que mais se pode aspirar?
Eu sei que sai do pêlo: à meia-noite chego a casa e fico acordado a trabalhar na preparação do Cine Eco até as seis. Ouvindo “Il Trovador”. Esperando pelo dia de amanhã. Para ir à tipografia antes de voltar ao FICAP ás 15 h. Pois, morre-se, eu sei, todos sabemos, mas morre-se a fazer o que se gosta e a desfrutar o que de melhor existe nesta Humanidade tão contraditória. Depois há ainda a alegria de ver o filho a singrar caminho solitário. Feliz. Sem um euro no bolso. Mais um a funcionar como mecenas da cultura em Portugal.

sábado, setembro 20, 2008

A ANEDOTA E A GLOBALIZAÇÃO

A globalização é assim: tenho um amigo em Valência que me manda normalmente anedotas que me divertem. Normalmente rio ou sorrio (já aconteceu não achar graça nenhuma, ele que me desculpe!), sózinho ou em família. Mas esta, que ultrapassa a mera anedota, partilho-a convosco. Vem obviamente do Brasil, refere-se aso EUA, e vai aprecer num blogue português. Com votos de longa vida para o protagonista que São pedro entrevista..

Racismo à americana

Na fila para entrar no céu, São Pedro checava aqueles que mereciam entrar. Ele pergunda para o próximo:
- E você?... O que andou fazendo pelo mundo?
- Eu sou Barack Obama e fui o primeiro negro a ser eleito presidente dos Estados Unidos!
- Nos Estados Unidos?! Um presidente negro?! Com todo respeito, você está me gozando!!! Quando isso aconteceu?!?!?!
- Uns vinte minutos atrás ...

domingo, setembro 14, 2008

CINEMA: SEDUÇÃO, CONSPIRAÇÂO

SEDUÇÃO, CONSPIRAÇÂO
Depois de uma permanência na América que lhe permitiu rodar dois filmes de seguida, “Hulk” (2003) e “O Segredo de Brokeback Mountain” (2006), Ang Lee parece ter tido necessidade de refundar a sua individualidade, regressando à China, para filmar “Sedução, Conspiração”, baseado num romance da escritora Eileen Chang, que aborda um tempo dramático da história da sua pátria, precisamente a época da II Guerra Mundial, durante a qual a China foi ocupada pelo Japão, e onde se incubou igualmente a China contemporânea, divida entre a República Popular da China e Taiwan, ou simplesmente República da China.
Diga-se de passagem que Ang Lee não é um nado da China comunista, da comandada por Mao Tsé-Tung, mas sim da China nacionalista de Chiang Kai-Shek, pois foi em Pingtung (Taiwan), que nasceu em 23 de Outubro de 1954, tendo estudado no National Taiwan College of Arts, emigrando depois, ainda novo, com a família para os Estados Unidos da América, onde cursaria “realização”, na University of Illinois, e produção cinematográfica na New York University. Durante o tempo da faculdade foi assistente de realização no filme de fim de curso de Spike Lee, "Joe's Bed-Stuy Barbershop: We Cut Heads". Em 1992 estreia-se na longa-metragem com "A Arte de Viver", a que se segue um pequeno grupo de filmes que lhe traçam uma sólida reputação: em 1993 dirige "O Banquete de Casamento", que ganhou o Urso de Ouro em Berlim, em 1994, "Comer, Beber, Homem, Mulher”, que recebeu uma nomeação para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (rodado em Taiwan), adaptando depois, no ano seguinte, uma obra de Jane Austen, " Sensibilidade e Bom Senso", até que, depois de ter assinado ainda, em 1997, "A Tempestade de Gelo", vê confirmado e reconhecido o seu talento, com “O Tigre e o Dragão" (2000), filme com que ganha dois Globos de Ouro, triunfando igualmente no Festival de Cannes. A sua excelente versão de “Hulk” é de 2003, a que se segue, em 2005, "O Segredo de Brokeback Mountain", com apoteóticos Óscar e Globo de Ouro para Ang Lee. Casado e pai de dois filhos, divide a sua existência pelos EUA e a China.
Realizador de uma extrema sensibilidade, voltado para as minorias e para os seus problemas, voluptuoso no seu cinema, quer nas imagens, quer nos temas abordados, onde o amor e a sexualidade impõem presença absorvente, Ang Lee é um dos grandes cineastas actuais, mais um a contribuir para o progressivo peso que a cultura e as artes orientais ocupam presenemente no panorama mundial contemporâneo, com uma ressonância muito especial nas culturas ocidentais. “Sedução, Conspiração” regressa aos tempos da II Guerra Mundial, precisamente a Xangai, 1942, durante a ocupação japonesa. O filme revela de início uma construção relativamente complexa com o recurso a “flash backs” nem sempre muito perceptíveis. Uma senhora de porte burguês, de nome Mak, passeia por uma das ruas de Xangai, entra num café, telefona de forma misteriosa, despoletando uma qualquer acção, e senta-se, olhando a rua através da vidraça. Boa altura para o seu pensamento, e nós com ele, retrocedermos a 1938, quando essa assumida senhora Mak não passava de uma estudante universitária de nome Wong Chia Chi, que é convidada se juntar ao elenco de um grupo de teatro nacionalista e revolucionário, que não aceita representar “esse burguês drama que é “A Casa de Bonecas””, e opta por algo que faz levantar todas as noite o fervoroso público, entusiasmado, que grita “Viva a China!”. A jovem está igualmente arrebatada com a revelação da arte dramática, e timidamente apaixonado pelo colega Kuang, o mesmo que a convidara a integrar o grupo e a desvia para uma acção não já de representação em palco, mas na perigoso e sedutora vida real.
Wong Chia Chi aceita associar-se à conspiração urdida para matar um importante político chinês, Mr. Yee, que é um dos mais relevantes colaboracionistas chineses com o governo japonês. Wong passará a ser a senhora Mak, a quem cabe a difícil tarefa de se insinuar no restrito e muito bem guardado grupo de senhoras que joga todos os dias “majong”, entre as quais se conta a mulher de Mr. Yee. Será através dela que irá mais longe, até junto de Yee, tornando-se sua amante. A ligação leva tempo a assumir-se e não será nessa primeira tentativa que o assassinato resultará. Anos depois, em 1941, Kuang reencontra Wong, esta volta a vestir a pele da senhora Mak, e desta feita a relação amorosa com Yee resulta plenamente, para desilusão de ambos os amantes: Wong nunca terá pensado deixar-se submeter por esse desejo mórbido que a entrega literalmente nas mãos torturadoras de Yee, este deixa-se finalmente sucumbir aos encantos da dita senhora Mak que o entrega à morte. Nem tudo será, porém, tão simples, há muitas outras peripécias e um final que não se revela, mas o breve resumo permite prever várias questões: um filme de fundo político, sobre a China esmagada pelo Japão, que tenta sobreviver como nação, e será deste cadilho de paixões políticas extremadas que irão surgir as duas Chinas até hoje inconciliáveis. Por outro lado, desenvolvendo-se em paralelo, uma outra história de submissão e tortura, mas esta a um nível pessoal, e atormentadamente desejada pela vitima.
O filme não tem a desenvoltura formal de algumas outras obras de Ang Lee, arranca mal, é muito lenta e relativamente confusa na sua meia hora inicial, revela nalgumas sequências, um academismo não muito conforme ao autor em questão, mas é uma obra interessante, com uma boa descrição histórica de China desta época, e sobretudo um estudo muito curioso de uma relação intimamente conflituosa entre um torturador sádico e uma mulher submissa no seu intimo, mas revolucionária na sua conduta, o que torna toda a relação muito complexa. Wong deseja sexualmente a presença de Yee, que a domina, a brutaliza e a satisfaz, mas entrega-o enquanto carrasco do seu povo. O conflito entre o seu desejo e o seu dever nunca se resolve até final e ela (e os seus camaradas) vem a ser vítima desse descontrolo. O que relembra o fascinante “Senso”, de Visconti, sem o fulgor melodramático do mestre italiano. Mas as relações entre vítima e carrasco, e a sedução que delas pode advir, inclusive para o submisso, isso aponta para Liliana Cavani e “O Porteiro da Noite”, na altura um filme tão incompreendido e maltratado e hoje em dia tão “in” nas sexualidades alternativas.
Mais uma vez Ang Lee se embrenha num universo de uma sexualidade reprimida (e repressora: uma não existe sem a outra!), demonstrando não só tacto, como uma grande agilidade e sensibilidade a filmar cenas de sexo explícito, que nunca caem no pornográfico de mau gosto, apesar de rondarem perigosamente esse abismo. Excelentes actores, com especial destaque para Tony Leung Chiu Wai, um Mr. Yee de uma frieza e de um rigor de composição notáveis, que deixa explodir na cama toda a sua agressividade, e para a estreante Wei Tang, que consegue transmitir toda a perturbante duplicidade de sentimentos.

SEDUÇÃO, CONSPIRAÇÂO
Título original: Se, jie ou Se jie ou Lust, Caution
Realização: Ang Lee (EUA, China, Taiwan, Hong Kong, 2007); Argumento: James Schamus, Hui-Ling Wang, segundo romance de Eileen Chang ; Produção: Lloyd Chao, William Kong, Ang Lee, David Lee, Zhong-lun Ren, James Schamus, Darren Shaw, Dai Song, Doris Tse; Música: Alexandre Desplat; Fotografia (cor): Rodrigo Prieto; Montagem: Tim Squyres; Casting: Rosanna Ng; Design de produção: Lai Pan; Direcção artística: Kwok-wing Chong, Eric Lam, Sai-Wan Lau, Bill Lui, Alex Mok; Guarda-roupa: Lai Pan; Direcção de produção: Gerry Robert Byrne, Eric Fong, Chiu Wah Lee, Wai Luen Pang; Assistentes de Realização: Tze Hung Lam, Rosanna Ng; Departamento de arte: Sai Kit Wong; Som: Eugene Gearty, Philip Stockton; Efeitos visuais: Jeff Briant, Zachary J. Gans, Matt Glover, Sarah McMurdo, Ben Simons, Brendan Taylor, Fiona Campbell Westgate; Companhias de produção: Hai Sheng Film Production Company, Focus Features, Haishang Films, Mr. Yee Productions, River Road Entertainment, Sil-Metropole Organisation.
Intérpretes: Tony Leung Chiu Wai (Mr. Yee), Wei Tang (Wong Chia Chi / Mak Tai Tai), Joan Chen (Yee Tai Tai), Lee-Hom Wang (Kuang Yu Min), Chung Hua Tou (Old Wu), Chih-ying Chu (Lai Shu Jin), Ying-hsien Kao (Huang Lei), Yue-Lin Ko, Johnson Yuen, Kar Lok Chin, Su Yan, Caifei He, Ruhui Song, Anupam Kher, Liu Jie, Hui-Ling Wang, Akiko Takeshita, Hayato Fujiki, Yu Lai Cheng, Li Dou, Yuji Kojima, Lisa Lu, Jacob J Ziacan, etc.
Duração: 157 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Classificação etária: M/ 18 anos; Data de estreia: 31 de Janeiro de 2008 (Portugal); Data de estreia: 24 de Setembro de 2007 (mundial).

"CABARET" NO MARIA MATOS

" Cabaret" - Bob Fosse
“CABARET” NO “MARIA MATOS”
E pronto, estreou-se o mais aguardado “acontecimento” teatral da rentrée, o “musical” “Cabaret”, originalmente posto em teatro num libreto de Joe Masteroff e letra de Fred Ebb, com fabulosa partitura musical de John Kander (baseando-se o “musical” da Broadway num peça de John Van Druten, “Adeus a Berlim”, e em contos de Christoher Isherwood, “Histórias de Berlim”), traduzido para português por Pedro Gorman, com adaptações de letras de Ana Zannatti.
A encenação é de Diogo Infante, num teatro que ele dirigiu com particular sucesso nos últimos anos, e de que se demitiu recentemente, num imbróglio que metia a sua transferência para a direcção do Teatro Nacional de D. Maria II. A preparação do espectáculo levou à realização de um interessante programa na RTP; “À Procura de Sally”, onde, entre milhares de candidatas, um júri seleccionou Ana Lúcia Palminha para o papel de Sally Bowles, a protagonista.
Tudo se conjugava para um estrondo espectacular. Que acontece, mas não da forma por que se adivinhava. O espectáculo é globalmente um fracasso, com muito pouco a recomendá-lo.
A história é conhecida: Clifford Bradshaw, jovem norte-americano, recém-chegado a Berlim, escritor em difícil gestação e em busca de inspiração, conhece Sally Bowles, uma inglesa, cantora de cabaret, aspirante a estrela do Kit Kat Klub. Conhecem-se, amam-se, passam a viver juntos num quarto alugado a Fraulein Schneider, casa onde também vive Herr Schultz, judeu, dono de uma frutaria, eterno apaixonado pela senhoria. Tudo seria simples, se não estivéssemos em inícios dos anos 30 e Hitler e o nacional-socialismo não se encontrassem a caminho de consolidar o poder, para iniciarem a limpeza étnica e apurar a raça ariana. Conflitos amorosos inscritos em tragédias políticas, tudo ao som do decadentismo de “Life is a Cabaret” ou do austero e puritano “Tomorrow Belongs To Me” - o resultado só poderia ter um fim dramático.
Dramática não foi, porém, a adaptação do “musical” a cinema, que o genial Bob Fosse e a deslumbrante Liza Minelli cozinharam gostosamente em 1966, transformando o título numa mítica referência. Devemos reconhecer que tendo por base de comparação este filme, muito difícil seria encenar um espectáculo que não destoasse ao ser colocado ao lado. Declare-se no entanto que em Portugal já há experiências gloriosas, desde o “Sweeney Todd”, de João Lourenço, até vários espectáculos de Filipe La Feria (falando só em adaptações, citem-se “My Fair Lady”, “Música no Coração”, “Jesus Cristo Superstar” ou “O Violino no Telhado”).
Infelizmente, “Cabaret” é um duque no baralho. A encenação é fraquinha, nada inventiva, deixa os actores presos em marcações cerradas durante minutos (o que é de surpreender em Diogo Infante, que já vimos fazer coisas muito boas), a coreografia não existe (não se chama coreografia a meninas a saltitar num palco, ou a rodarem, à volta de cadeiras), a iluminação (criativa) não se vê (há luzes, focos sobre os cantores, pouco mais), os cenários são penosos (nada sugestivos e tecnicamente mal resolvidos: ver entrar e sair uma cama, um guarda-fato, uma mesa e uma cadeira, empurrados por actores, de cinco em cinco minutos, torna-se tão repetitivo que ao meu lado um senhor dormia a bem dormir, e não era na cama). A orquestra que executa em palco não é má e passemos aos actores- cantores.
Pois bem: nota positiva para Henrique Feist, boa voz, bom intérprete, bom actor, boa presença. Ele é um convincente “mestre-de-cerimónias”, que faz a ligação entre diversas cenas, as comenta e as introduz. Também Pedro Laginha me parece bem. Fernando Gomes, em Herr Schultz, defende-se bem, é um actor experimentado e convive bem com o canto. Fraulein Schneider, interpretada por Isabel Ruth, tem a silhueta requerida e um grande talento como actriz, mas não encontrou (ou na encontraram por ela) o tom para cantar o que lhe competia. Custou-me ver uma actriz de quem tanto gosto neste papel.
Finalmente, Ana Lúcia Palminha, a escolhida para protagonista. Um caso curioso. Ela não é estreante no teatro, é actriz há muito e tem talento óbvio. Tem inclusive uma bonita voz, e quando a vi no programa da RTP apostei desde logo nela. O potencial está lá, mas parece-me inteiramente desfasada do papel. Tem boa voz, mas não a aproveita, a não ser num ou dois números. E de resto toda a sua representação é um over acting incompreensível. Tenta copiar Liza Minelli, escolhendo um espalhafato e uma falta de senso total. E seria tão fácil apontar-lhe o bom caminho: projectar “O Anjo Azul”, de Sternberg e Marlene, e mostrar-lhe que a sedução se faz de mistério, do que de mais secreto e íntimo tem o ser humano, particularmente a mulher. Gesticular estardalhaço é tudo o que há de menos cativante e temo muito pela sanidade psíquica de Clifford Bradshaw ao apaixonar-se por tal mulher. Veja a Marlene, estude os gestos, os silêncios, o olhar, veja-a explodir no palco e esconder-se na intimidade, num mistério sem limites. Veja como coloca languidamente a mão, o braço, as pernas, como enlaça uma cadeira, como fulmina quem a olha, como reduz a cinzas os seus perseguidores. Pobre professor Unrat!
De resto, esta obra requer um clima perverso, um ambiente decadente, um rufar de tambores de morte, um adivinhar de tempestade por entre os fumos do vício e do prazer que aqui nunca se sentem, ou pressentem. Realmente, como me dizia um amigo ao intervalo, “gosto muito de Bob Fosse e Liza Minelli”. Eu também.

PS - Quando falei num “intervalo” não disse de quanto tempo, quantos dias. Mas apeteceu-me interrompê-lo. Os blogues têm isso de muito bom: tudo se passa entre o autor e o autor, e quem o desejar ler. Apeteceu-me um “intervalo”, fi-lo. Apeteceu-me escrever, escrevi. E apeteceu-me tanto escrever, que até arranjei tempo. Já está. Muito obrigado por terem esperado durante o ”black out”.
" Anjo Azul "- Marlene Dietrich e Josef Von Sternberg

quarta-feira, setembro 10, 2008

INTERVALO..

Por vezes é preciso fazer, no mínimo,um "Intervalo".
Assim será por aqui. até um dia...

terça-feira, setembro 09, 2008

CINEMA: WALL.E

WALL•E

Surpreendente filme de animação, que traz a assinatura de Andrew Stanton, numa produção da Pixar (“Toy Story”, “Monstros e Companhia”, “À Procura de Nemo”, “Uma Vida de Insecto”, “The Incredibles: os Super-Heróis” ou “Ratatui”), agora aliada à Disney. Não que a animação não tenha dado um grande salto quantitativo (e qualitativo também, em muitos e honrosos casos) nos últimos anos, devido sobretudo às novas tecnologias. Muitos têm sido os filmes que continuamente nos surpreendem, mas este contém outros ingredientes para a surpresa ser maior e o resultado mais “surpreendente”. Estamos na presença de um grande filme, é certo, de um filme para a família, como é norma nos filmes de animação (isto é: filmes que têm em conta todas as faixas etárias, apesar de especialmente concebidos para um público infantil), mas há sobretudo duas “novidades”: uma obra que aborda temas “adultos”, ainda que as crianças a eles tenham acesso pela forma como os mesmos são colocados, e uma narrativa algo contemplativa e raramente dada a grandes e frenéticos desenvolvimentos, privilegiando a poesia e a ternura, impondo personagens de forma discreta (e secreta), deixando respirar as situações. Enfim, um filme que não trata as crianças como deficientes.
Situe-se o tema: na Terra, num futuro certamente longínquo (setecentos anos, será?), deserta de humanos e envolvida numa camada de lixo indescritível, que levou os seus derradeiros habitantes a exilarem-se numa estação espacial, continua a funcionar placidamente um robot de nome Wall.E. Executa as tarefas para que foi programado sem hesitar. Persiste na inglória (será mesmo?) tarefa de reunir montanhas de lixo no seu interior e a compactá-las, colocando depois o metálico e agressivo rectângulo assim produzido no cima de resmas e resmas de outros idênticos rectângulos de lixo de igual modo comprimido. Visto através de algumas panorâmicas aéreas dir-se-ia que estamos na presença de uma grande metrópole, com os seus arranhas céus (lembram-se de “West Side Story”, planos iniciais?) a serem sobrevoados pela câmara. Mas cedo se percebe que tudo aquilo são arranha-céus de lixo, de consumismo desmedido e desenfreado que acabou com a vida no planeta. Sobrevive um robot. Que organizou a sua existência de forma muito monótona, mas com alguns momentos de relaxe e de prazer. Ver um excerto de um musical (“Hello, Dolly”), num antiquado gravador de cassetes é uma delas. Sempre a mesma sequência (a belíssima “Put On Your Sunday Clothes”). Mas o cantinho onde se refugia depois de um dia de trabalho também tem os seus encantos, umas luzinhas escrupulosamente repescadas do lixo, algum conforto, mesmo para um metálico e insensível robot. Aí é que todos vossências se enganam, se assim pensarem. A Terra pode ter afastado os humanos, mas alguns dos seus mais delicados sentimentos permaneceram no interior de um robot que cria amizades (com uma baratinha de antenas no ar que não o larga), e que “sente” definitivamente como anteriormente alguns humanos sentiam (não muitos é certo, senão a coisa não tinha chegado ao descalabro que se vê).
Enfim, Wall.E é definitivamente um sentimental, o que se comprova logo que aterra no solo terrestre uma nave vinda, nessa altura não se sabe de onde, que larga um esférico e muito bem lançado robot branco metalizado, que por sinal é “uma” robot de nome Eve. Eve desconfia inicialmente de tudo e todos, envia raios poderosos que desfazem as ameaças, possíveis e improváveis, mas tomba de amores por Wall-E, depois de um início de romance não muito prometedor. Acontece nos filmes, dizem. Nos românticos, em que é preciso acreditar para se manter a saúde, física e psíquica. Daí em diante o que temos é uma história de amor, contrariada pelas circunstâncias, mas que acabará como culminam todas as histórias de fadas.
Importante a reter: a qualidade da planificação da obra, a descrição do planeta Terra fatalmente devastado, a admirável direcção artística, com cenários fabulosos, mas profundamente eficazes, a antropomorfização dos robots que é magnifica e nos permite uma identificação total com as duas personagens centrais, que conseguem durante muito tempo monopolizar a acção do filme sempre com um interesse notável, a excelente partitura musical de Thomas Newman que não procura o rodriguinho fácil mas a grande composição sinfónica, emparelhando com clássicos como o “número” já citado de “Hello, Dolly”, uma versão de “La Vie em Rose” (cantada por Louis Armstrong) ou os acordes de “Assim Falou Zaratustra” (utilizado no mítico “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Kubrick, outra referência óbvia quando da relação das citações cinéfilas, que são muitas e boas).
Um “coup de force” é toda a primeira parte do filme sem diálogos, em que o empenhado trabalho de Wall.E ultrapassa, ou torna estimulante, a concepção de quase filme mudo. Aliás este tom de “filme mudo” acaba por resultar ao tornar mais eficaz o lado catastrófico das sequências iniciais, onde a ausência de figuras humanas cria uma paisagem particularmente estranha, o que se acentua com a falta de diálogo, com a incomunicabilidade do robot, a solidão e o “silêncio de vozes”, opressivo e ameaçador.
Uma planta, germinando numa bota escalavrada, é o fio de esperança que resta aos humanos que vivem numa estação espacial, com todas as comodidades, mas obesos e presos a ecrãs de televisão que repetem publicidade e imagens idílicas e que os afastam da realidade primordial e da comunicação. Uma vida que pode bem ser a dos humanos daqui a pouco, não num filme de animação e antecipação, mas no concreto da existência. Outra das profecias que cai bem num filme visto por milhões de jovens, quando se agiganta, perante eles, a ameaça de futuras gerações de seres descompensados pela má alimentação, pela inactividade, pela solidão, pela alienação perante a realidade, trocada por essa outra “realidade virtual” que ganha terreno a cada dia.
Fica a promessa de que o amor triunfa e a revolta de alguns acaba por ser a felicidade de muitos. O que, num filme americano da Disney-Pixar, não deixa de ser uma surpreendente novidade. Um belíssimo filme, uma das grandes certezas de 2008. Imaginem os “blockbusters” e a animação a figurarem entre os 10 melhores do ano. De certeza.

e agora o excerto de "Hello, Dolly" que tanto se ouve em "Wall.E":

WALL•E
Título original: WALL•E
Realização: Andrew Stanton (EUA, 2008); Argumento: Andrew Stanton, Pete Docter, Jim Reardon; Produção: Lindsey Collins, John Lasseter, Jim Morris, Thomas Porter; Música: Thomas Newman; Montagem: Stephen Schaffer; Casting: Natalie Lyon, Kevin Reher; Direcção de produção: Ralph Eggleston; Maquilhagem: Gretchen Davis; Direcção de produção: Joshua Hollander, Andrea Warren; Departamento de arte: James S. Baker, Anthony B. Christov, Jason Deamer, Angus MacLane, Kevin O'Brien, Justin Wright; Som: Ben Burtt; Efeitos visuais: Chris Chapman, David MacCarthy, Carlos Monzon, David Munier, etc.; Direcção de produção: Pixar Animation Studios, Walt Disney Pictures.
Intérpretes (vozes): Ben Burtt (WALL•E / M-O); Elissa Knight (EVE), Jeff Garlin (Capttão), Fred Willard (Shelby Forthright - BnL CEO), MacInTalk (AUTO), John Ratzenberger (John), Kathy Najimy (Mary), Sigourney Weaver (computador), Kim Kopf, Garrett Palmer, etc.
Duração: 98 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Classificação etária: M/ 6 anos; Data de estreia: 14 de Agosto de 2008 (Portugal);

domingo, setembro 07, 2008

CINEMA: O CAVALEIROS DAS TREVAS

O CAVALEIRO DAS TREVAS
“O Cavaleiro das Trevas”, de Christopher Nolan, baseia-se num conceito e numa personagem, para sobre eles erguer todo o filme. O conceito é a dualidade de potencialidades que existe no interior de cada ser humano, e que podem ser desenvolvidas para o Bem ou para o Mal, o que se exemplifica de forma bem concreta na personagem de Harvey Dent (Aaron Eckhart), mais tarde também chamado precisamente “Two-Face”, e que deita à sorte a morte ou a sobrevivência de quem consigo se cruza atirando uma moeda ao ar, uma cara clara ou uma coroa bem escura. Ou seja, para Jonathan Nolan e Christopher Nolan, que escreveram o argumento de “The Dark Knight”, conjuntamente com David S. Goyer, segundo lendárias personagens criadas por Bob Kane, na célebre banda desenhada, o Homem tem dentro de si a capacidade de escolher o seu caminho, investindo no Bem ou acometendo o Mal, consoante o seu desígnio. Mas este desígnio é prefigurado no filme por dois símbolos igualmente muito significativos enquanto tal: Batman (Christian Bale) e Joker (Heath Ledger). O Bem sabe-se que se chama, na realidade, Bruce Wayne, que tem uma dupla existência, sendo por vezes o misteriosos Batman, que é milionário e se serve da sua riqueza não só para lutar contra o crime, como para socorrer quem precisa. Do Mal, nada se sabe. O Joker é, efectivamente, um enigma, como enigma são todos os grandes “monstros” da história humana. Como chegaram ao que foram ninguém sabe, apesar de se lançarem muitas pistas sociais e psicanalíticas. O Mal existe, está aí, é o Joker neste filme. Um Mal terrível, que não se preocupa com a acumulação do dinheiro ou a conquista poder, que não tem intenções pessoais de grandeza desmedida, mas que se instila e segreda ao ouvido de cada um, como o grilo do Pinóquio, mas sempre numa catastrófica perspectiva demoníaca. São as modernas “Tentações de Santo Antão”, onde as provocações do Mal existem apenas como forma de corromper o homem, a sociedade e, sobretudo, o Bem. O Joker não tem qualquer fito concreto na extensão do Mal a não ser precisamente isso, expandir o Mal. O seu olhar não repousa tranquilamente sobre as vitimas, vagueia no espaço, fala de forma capciosa para alguém, mas olha em redor em busca de nova vítima, quer multiplicar os pecadores, ampliar o horror, criar o caos total, sem intuitos pré definidos, apenas porque o caos é assim, sem princípio nem fim, sem arrumação possível, imprevisível e absurdo, tal qual a genial criação de Heath Ledger.
Se Batman é arrumadinho e consciencioso, tem escritório e guarda-fato electrónico para a sua máscara secreta, se tem a ciência que o ajuda (que o aconselha sobretudo a ser moralmente irrepreensível e não invadir a privacidade do cidadão, coisa de somenos para a actual administração Busb), se tem um mordomo que vela pela sua comodidade, se aceita passar por vilão, para que a polis sobreviva, se Batman é a norma positiva da vida em sociedade, o Joker é obviamente o seu contrário, o triunfo do absurdo sob a forma de horror. Um horror que se estampa desde logo no seu rosto de um riso imposto, de boca riscada a lâmina, com múltiplas explicações, adaptadas a cada novo ouvinte.
O Joker normalmente é a carta do baralho que traz fortuna (veja-se a ambiguidade do termo “fortuna”, que quer dizer “sorte” e “riqueza”, como se ambas se sobrepusessem). Aqui o Joker não anuncia nada de benigno, antes pelo contrário. Em Gotham City, o crime vive ameaçado por um promotor público que o quer erradicar da cidade e por um chefe da polícia que está igualmente disposto a não pactuar com a corrupção e o desmando. Batman é o aliado de ambos a quem se recorre para impor ordem na desordem. Basta acender rumo ao céu o holofote que a comunidade já conhece para que o temor e o respeito pela justiça desçam sobre a cidade. O que leva a Máfia a saturar-se da situação que lhe deixa pouca margem de manobra. Aceita por isso os serviços do Joker para restaurar a velha anarquia e impor de novo o caos. O Joker agradece. Nada lhe dá mais prazer do que o Mal. Praticá-lo, sim, mas sobretudo difundi-lo, alargar horizontes, contaminar, perverter, ir ao hospital onde se encontra um doente especial e transformar o seu rosto de belo e justo cidadão no estertor da morte. Assim seja.
Um tal filme poderia passar por uma parábola simplista para incautos desprevenidos. Mero raciocínio falhado. Ao que se assiste é a um dos melhores filmes do ano, alicerçado num argumento escrito com inteligência e intencionalidade, sem primarismos nem facilidades, saído de uma banda desenhada, cujo espírito respeita, mas a que confere uma maturidade e uma universalidade evidentes, e que consegue o feito indesmentível de transmitir ao longo de toda a sua projecção um enorme mal estar, esse mal estar que se instalou há anos na sociedade norte-americana e que lentamente se vai estratificando numa psicose malsã. O mundo atravessa uma crise profunda, mas essa crise ainda se sentirá mais na sociedade norte-americana, dividida profundamente quanto ao que de mais essencial a democracia significa, o que se pode verificar inclusive pelos resultados das sondagens eleitorais. Sem querer identificar de forma muito primária o Mal e o Bem com divisões partidárias, o que se pode concluir é que esta divisão (em grande parte consequência do 11 de Setembro, mas também do catastrófico governo Bush, para lá de outras causas de menor impacto) está a gerar no subconsciente colectivo uma onda de insegurança, de pânico, de angústia, de inquietação que ninguém pode ignorar, com as consequências para o futuro dessa sociedade (e do mundo) que também ninguém pode antever com precisão.
Para recriar plasticamente este clima de ameaça latente, de á beira de fim de mundo, Christopher Nolan serve-se de uma direcção artística magnifica, de uma excelente fotografia, de uma banda sonora impressionante, de uma partitura musical inspirada, de uma montagem que sabe criar o clima próprio, mas sobretudo de um conjunto de actores absolutamente invulgar. Christian Bale, Michael Caine, Gary Oldman, Morgan Freeman, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhaal, Eric Roberts e tantos outros mostram-se dignos uns dos outros, criando um elenco de luxo, onde será justo destacar a cereja em cima do bolo, o malogrado Heath Ledger que demonstra aqui o seu enorme talento e a justeza da sua representação. Ser vilão é muito mais fácil do que ser um honesto e cinzento cidadão. Mas há vilões e vilões. Este de Heath Ledger não é apenas mais uma figura pitoresca, uma máscara postiça, um fato que se veste como se despe. Ele carrega de vida intensa uma personagem histriónica, coloca angústia no esgar que se pensa apenas sorridente, mas nunca se afasta da figura da tragédia. Ele transforma o Joker num símbolo de maldade imanente e absoluta que consegue alastrar a cada espectador e imbuir de pesadelos os nossos sonhos ao sair da sala de cinema. Se há actor que se liberta da lei da morte, aqui está um que se torna inesquecível. Ele continuará a povoar de inquietação e de sardónico riso as ruas solitárias e nocturnas das grandes metrópoles.
O CAVALEIRO DAS TREVAS
Título original: The Dark Knight
Realização: Christopher Nolan (EUA, 2008); Argumento: Jonathan Nolan, Christopher Nolan, David S. Goyer, segundo personagens criadas por Bob Kane; Produção: Christopher Nolan, Charles Roven, Emma Thomas, Kevin De La Noy, Jordan Goldberg, Philip Lee, Karl McMillan, Benjamin Melniker, Thomas Tull, Michael E. Uslan; Música: James Newton Howard, Hans Zimmer; Fotografia (cor): Wally Pfister; Montagem: Lee Smith; Casting: John Papsidera; Design de produção: Nathan Crowley; Direcção artística: Mark Bartholomew, James Hambidge, Kevin Kavanaugh, Simon Lamont, Steven Lawrence, Naaman Marshall; Decoração: Peter Lando; Guarda-roupa: Lindy Hemming; Maquilhagem: Janice Alexander, Peter Robb-King; Direcção de produção: Chen On Chu, Bill Daly, Geoff Dibben, Jan Foster, David E. Hall, Thomas Hayslip, Michael Murray, Susan Towner; Assistentes de realização: Julian Brain, Michael T. McNerney, Nilo Otero; Departamento de arte: J. André Chaintreuil, Jenne Lee, Robert Woodruff; Som: Richard King; Efeitos especiais: Chris Corbould, Don Parsons; Efeitos visuais: Joyce Cox-Weisiger, Nick Davis, Raul Esparza III, Julie Verweij, Mark H. Weingartner; Companhias de produção: Warner Bros. Pictures, Legendary Pictures, DC Comics, Syncopy;
Intérpretes: Christian Bale (Bruce Wayne ou Batman), Heath Ledger (The Joker), Aaron Eckhart (Harvey Dent ou Two-Face), Michael Caine (Alfred), Maggie Gyllenhaal (Rachel Dawes), Gary Oldman (Det. Lt. James Gordon), Morgan Freeman (Lucius Fox), Monique Curnen (Det. Anna Ramirez), Ron Dean (Detective Wuertz), Cillian Murphy (Scarecrow), Chin Han (Lau), Nestor Carbonell (Mayor Anthony Garcia), Eric Roberts (Salvatore Maroni), Ritchie Coster (The Chechen), Anthony Michael Hall (Mike Engel), Keith Szarabajka, Colin McFarlane, Joshua Harto, Melinda McGraw, Nathan Gamble, Michael Vieau, Michael Stoyanov, William Smillie, Danny Goldring, Michael Jai White, Matthew O'Neill, William Fichtner, Olumiji Olawumi, Gregory Beam, Erik Hellman, Beatrice Rosen, Vincenzo Nicoli, Edison Chen, Nydia Rodriguez Terracita, Andy Luther, James Farruggio, Tom McElroy, Will Zahrn, James Fierro, Patrick Leahy, Sam Derence, Jennifer Knox, Patrick Clear, Sarah Jayne Dunn, Chucky Venice, Winston Ellis, David Dastmalchian, Sophia Hinshelwood, Keith Kupferer, Joseph Luis Caballero, Richard Dillane, Daryl Satcher, Chris Petschler, Aidan Feore, Philip Bulcock, Paul Birchard, Walter Lewis, Vincent Riotta, Nancy Crane, K. Todd Freeman, Matt Shallenberger, Michael Andrew Gorman, Lanny Lutz, etc.
Duração: 152 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia Pictures; Classificação etária: M/ 12 anos; Locais de filmagem: EUA: Atwood Café, 1 W Washington St, Chicago, Illinois; Hotel 71 - 71 E. Wacker Drive, Downtown, Chicago, Illinois; IBM Building - 330 N Wabash, Chicago, Illinois; (interiors) Los Angeles, California; Lower Wacker Drive, Downtown, Chicago, Illinois; McCormick Place - 2301 S. Lake Shore Drive, Near South Side, Chicago, Illinois; Millennium Station, Chicago, Illinois; Navy Pier - 600 E. Grand Avenue, Near North Side, Chicago, Illinois; Old Post Office, Chicago, Illinois; Old Town, Near North Side, Chicago, Illinois; Richard J. Daley Center - 55 W. Randolph Street, The Loop, Downtown, Chicago, Illinois; Trump International Hotel & Tower - 401 N Wabash, Chicago, Illinois; Twin Anchors Restaurant & Tavern - 1655 N. Sedgwick Street, Lincoln Park, Chicago, Illinois. Inglaterra: Battersea Power Station, Battersea, London; Bedford, Bedfordshire; Cardington, Bedfordshire; Chertsey, Surrey; Criterion Theatre, Jermyn Street, St James's, London; George Farmiloe Building - 28-36 St John Street, Clerkenwell, London; Leavesden Studios, Leavesden, Hertfordshire; Liverpool, Merseyside; London; Longcross, Surrey; Piccadilly Circus, Piccadilly, London; Pinewood Studios, Iver Heath, Buckinghamshire; Senate House, University College London, Malet Street, Bloomsbury, London; St John Street, Clerkenwell, London; Twickenham, Middlesex; University of Westminster, London. China, Hong Kong: International Finance Centre, Central; Queen's Road Central, Central; The Center, Central; The Peninsula Hong Kong Hotel, Salisbury Road, Kowloon; Victoria Harbour; Estreia em Portugal: 24 de Julho de 2008.

sábado, setembro 06, 2008

BATMAN, O CAVALEIRO DAS TREVAS

Uma excelente campanha publicitária para um excelente filme, de que se falará aqui proximamente. Para já, assinale-se a eficácia, a qualidade (e a modernidade) deste conjunto de cartazes.

sexta-feira, setembro 05, 2008

LIVROS

Algumas (novas) leituras de férias
Nos últimos tempos a minha atenção em relações a livros anda como sempre dispersa. Li um excelente Ivo Andric (nascido em Travnik, 9 de Outubro de 1892; falecido em Belgrado, 13 de Março de 1975), “O Pátio Maldito” (e tenho na mesinha de cabeceira, entre duzentos outros volumes, “A Ponte Sobre o Drina” para atacar). É um Nobel (1961), nascido na Bósnia, romancista e poeta, com apetências políticas que se notam bem em quem o lê. “O Pátio Maldito” fala-nos de uma prisão na Istambul Otomana que tem uma péssima reputação, só comparável à sua realidade. Ali vai parar Frei Petar, um franciscano bósnio, preso por engano e que, de certa forma, é um alter ego do escritor. O que se descobre neste universo concentracionário onde sobrevivem, lado a lado, inocentes e assassinos do pior jaez, violadores, criminosos, conspiradores, adversários políticos e servidores de religiões caídas em desgraça, é de molde a dar uma ideia do que pensa Ivo Andric da condição humana, da possível ou improvável harmonia entre os homens, e da própria região dos Balcãs que tem servido de berço a tanto conflito. Diz Andric: “Se quiseres saber o que vale um Estado e o seu governo, e qual é o seu futuro, é só ver quantos homens honestos e inocentes há nas prisões desse país e quantos criminosos e delinquentes em liberdade”. A escrita de Andric é de uma soberba clareza e de intensidade invulgar. Edição Cavalo de Ferro.

Heinrich Himmler, o comandante das SS, da Gestapo e principal organizador do Holocausto, um dos baluartes do Nacional-Socialismo, pode considerar-se um dos maiores “monstros” que a Humanidade produziu. É verdade, mas quem se ficar por aí fica-se por uma semi-verdade. Esse tal Heinrich Himmler, que mandava “limpar” o “lixo polaco” (mas só os que não podiam trabalhar nas fábricas militares para glória do III Reich, desses era aproveitada a sua força de trabalho, e só depois seriam “limpos”), esse mesmo Heinrich Himmler tinha irmãos, Gebhard e Ernest, tinha mulher e amante, tinha pais e demais família, não descurava os deveres familiares, era amigo dos seus (raros) amigos, de uma lealdade férrea ao seu Fuher, e teve uma sobrinha-neta de nome Katrin Himmler (nascida em 1967), que resolveu investigar a vida da sua família, e escrever um livro sobre “Os Irmãos Himmler”. Quem aprecia livros de terror não deve perder, como também quem gosta de História. Quem se deleita com histórias de grandes famílias com moralidade final a condizer também não dará por mal empregue o seu tempo. Na verdade, a leitura desta obra é terrível: verificar que um homem, mesmo uma família, que acariciava os caracóis nas cabeças dos seus filhos e se sentava com eles à mesa na noite de Natal, que dava grandes passeios pelas montanhas aos domingos, era o mesmo que mandava gazear milhões de seres iguais a ele em campos de extermínio, é algo que ultrapassa o terror gótico. É muito edificativo ler um livro onde um homem igual a qualquer um de nós (enfim, com uma “pancada a mais”, é certo, mas quantos de nós não poderemos ter essa pancada?) se pode transformar num monstro. Os monstros não existem enquanto tal. Não nascem “monstros”. Fabricam-se em laboratórios sociais. Uma mezinha daqui, uma ideiazinha malsã dali, uma frustraçãozinha mais, um pozinho que anda no ar, e um homem vulgar passa a génio do crime.
Diz Katrin: “Sabia sobre Heinrich Himmler, o meu tio. Sabia sobre “o grande assassino do século”, responsável pela exterminação dos judeus na Europa e assassino de milhões de outras pessoas. Identifico-me com as vítimas e sinto vergonha do meu apelido e, de certa forma, uma inexplicável culpa. Mas sempre evitei olhar para a história da minha própria família.” Até ao dia em que resolveu investigar e publicar o que descobriu. Honra lhe seja feita. Com uma família daquelas, haver uma descendente com esta coragem é de sublinhar. Como de sublinhar é a má tradução e a péssima revisão da Edição Caleidoscópio. Era bom que a revissem numa segunda edição (a haver!).
Nunca fui um entusiasta de Yukio Mishima. Não me inspirava nenhuma confiança aquele japonês que se matou num harakiri em honra do seu Imperador, e que tinha um exército particular. Havia o belíssimo filme de Paul Schrader (“Mishima: A Life in Four Chapters”), mas nem esse me convencia muito. Há dias, a Eduarda começou a traduzir uma correspondência entre Mishima e um outro génio da literatura nipónica, Yasunary Kawabata, e deu-nos aos dois um “coup de foudre”. Desatámos a ler Mishima e Kawabata e empolgámo-nos. Eu continuo com reservas quanto ao militarismo e ao lado auto-destrutivo de Mishima, mas “Confissões de uma Máscara” é uma obra-prima (Edições Assírio & Alvim). Por isso comprei, de livraria em livraria, tudo o que havia para ler de Mishima em português e mandei vir mesmo da Amazon uma biografia, um ensaio de Marguerite Yourcenar, e não fiquei por Mishima, alonguei-me por Kawabata, deliciei-me com a elegância da escrita e a sensibilidade de “Terra de Neve” (Edições Dom Quixote) e o atordoante “A Casa das Belas Adormecidas” (Edições Assírio & Alvim). Enfim, refastelado com muita e muito boa literatura.
Como os génios andam por aí à solta, mais do que se julga, em conversa com o entusiástico embaixador brasileiro Lauro Moreira, veio à baila o duplo centenário de Machado de Assis que eu já não lia há muito (desde os meus tempos de universidade). A conversa foi de tal forma empolgante que o apetite foi instantâneo. Regressado a casa, rebusquei uma lindíssima edição antiga de “Quincas Borba” e não a larguei até agora. É uma escrita tremendamente inventiva, irónica, moderna na sua construção. Uma volta pelas livrarias trouxe-me mais algumas relíquias para saborear durante as noites (por isso há pouca produção por estes lados – desculpem os leitores, mas entre ler génios e escrever para o blogue, ainda por cima com o trabalho que tenho entre mãos, não há que hesitar). Mas sobre Mishima e Assis, voltaremos a falar, certamente.